
O trabalho desenvolvido pela companhia de Vera Mantero é um caso à parte na dança contemporânea. Abarca uma série de elementos multidisciplinares que não se esgotam apenas no movimento dos corpos, são invadidas pela literatura, pelo teatro e pela música. Pretendem sobretudo, transmitir uma experiência, uma vivência para além do racional, visam tocar o emocional. “Vamos sentir falta de tudo aquilo que não precisámos” é disso um exemplo, uma obra muito actual, no sentido em que explora as diversas dimensões do ser humano, do ponto de vista do consumo e do supérfluo.
“Vamos sentir falta de tudo aquilo que não precisamos” foi posta em cena em 2009 e voltou em 2012 porquê?
Vera Mantero: Nós fizemos este trabalho em 2009 e depois de novo em 2010, porque já estava combinado em princípio mostrar a peça nestas datas, depois não tivemos mais propostas até que surgiu um novo convite na Madeira, na casa das mudas, e depois vamos para Braga e Évora. É a natureza do nosso trabalho, de quem nos quer programar e não há uma razão em especial.
Um dos motivos que a levou a encenar esta peça é o seu caracter inerentemente óbvio, que resulta de uma crítica que fazem ao seu trabalho, o facto de não ser compreendido. Defende, por outro lado, que nem tudo o que acontece em palco tem de ser entendido no seu todo pelo público, porquê?
VM: Não é necessário ser compreendido tudo pela racionalidade. Nós, como seres vivos entendemos com o sentir. Há o entender pelo racional e pelo emocional. Existe aquilo que as pessoas me dizem e o que me querem fazer perceber em relação aos outros pelo sentir, não por palavras. O que quero dizer é que podemos não perceber tudo pelo racional apenas, mas também pelo sentir. Não precisámos de entender uma peça do ponto a até o b de uma forma racional e podemos também entende-la de outras formas não racionais.
Mesmo quando a rejeitámos, porque isso passa pelo não gostar.
VM: Eu estou a falar desta questão que se verifica hoje em dia quando as pessoas vão ver um trabalho artístico e estarem numa quase angustia de: “eu tenho de perceber o que eles querem dizer”. Isto é que uma pena. Eu acho que uma pessoa usufrui mais se o for ver numa perspectiva: “eu posso entender isto, através dos meus recursos, do meu corpo e do meu espirito”. Um trabalho artístico não é feito para ser percebido verbalmente e saber explicar no fim. Não. Eu desenvolvo um trabalho artístico para uma pessoa ter uma vivência, uma experiencia e que nem sempre é de todo verbalizada, ou explicada, porque, por vezes, é mais forte, mais intensa, para ser precisamente toda verbalizável e explicável. Com toda esta ditadura de “eu tenho de perceber tudo o que ele me quer dizer” e sair do espectáculo sabendo explicar, as pessoas estão a reduzir a sua experiência estética, de vida, é isso que queria dizer.
Como é visto o seu trabalho no meio? Há os dançarinos das companhias de bailado e de dança contemporânea e há a Vera Mantero com um projecto multidisciplinar, que mostra desde o início da sua carreira.
VM: O meio estava já preparado para entender, porque a meio dos anos oitenta estávamos a entrar em mutação em vários pontos da Europa e do munda. A dança se estava apropriar de outras ferramentas provenientes do teatro, da voz, da escrita e eu como jovem bailarina estava a absorver todas essas coisas, estava a gostar imenso e achava tudo interessante. Eu comecei na senda de outros que estavam a desenvolver este tipo de projectos, eram mais velhos do eu e que tocavam nisso.
O Portugal dos anos oitenta, não é o de hoje. Como decorreu esse processo no nosso país?
VM: Deve lembrar-se dos encontros Acarte, nos anos oitenta. Eles criaram uma ponte, pelo menos em Lisboa e mais tarde para Coimbra e para o Porto. Foi um evento que ajudou a criar esse gosto num público e foi óptimo para ajudar a abrir as portas a pessoas como eu.
E fora dos grandes centros urbanos, quando estão em itinerância com estas peças, o público adere?
VM: Explicarmos ao público: olhe isto não é uma dança do costume é diferente, tem mais elementos e pode ser entendidos e absorvidos de outras formas. A poesia em geral, não é sempre explicável racionalmente, no entanto, toca-nos de maneira diferente, com várias ressonâncias, que nos fazem vibrar, que dão intensidade à nossa vida, sem ter de explicar. Se nós dermos pistas as pessoas para olharem para estes objectos, para estes projectos artísticos, eu acho que as pessoas têm todo o tipo de potencialidades para usufruir deste tipo de obras.
A pouco referiu que houve uma evolução da dança contemporânea, mas o que vê o futuro, como coreografa e dançarina?
VM: Desde os anos oitenta, eu acho que na dança contemporânea já houve vários passos evolutivos, que não aconteceram todos nesses anos oitenta, por exemplo, nos anos noventa, houve um tipo de dança mais minimalista, conceptual, mais verbal. Tem havido várias abordagens e movimentos. Eu não sei o que será o futuro, sei o que são o presente das várias hipóteses na dança contemporânea. De qualquer forma, as explorações interdisciplinares para mim continuam a ser muito interessantes, são um manancial inesgotável de coisas para fazer. Para mim também, uma possível continuação do que se tem feito nas últimas décadas será propor ao corpo, um comportamento, um relacionamento e coisas que tem a ver com deixar cair carapaças, corpos blindados, ver o que nós somos. Abrir essas armaduras, deixar tombar essas defesas que temos permanentemente. Permitir uma vida ao nosso corpo e ao nosso espirito juntos. Esta é uma divisão ancestral que existe na nossa sociedade, tudo isso são territórios inesgotáveis de exploração.
O corpo também como arte? No “comer uma coração” há uma estrutura imponente e depois o corpo. Não se pode falar aqui nem de bailado, nem de performance, porque o objectivo abarca tudo. Antes retratava-se o corpo, agora ele faz parte da obra de arte.
VM: Esse caso particular, eu estava inserida na escultura. Em geral, no palco, não sei se podemos dizer isso, mas ao mesmo tempo a obra é feita destes corpos e destas pessoas que estão em cena, destes comportamentos, destas acções e destes movimentos.
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