Como se nota no dia-a-dia?
HA: Tenho dados que são claros e acho que podemos medir. Se eu falar das pessoas, os bailarinos de dançando com a diferença são olhados e respeitados de outra forma no meio onde estão. Deixaram de ser vistos como os deficientes, ou seja, antes diziam: o meu vizinho é deficiente, para passar a ser: o meu vizinho é bailarino. O respeito é completamente diferente. Servem de modelo. Eles viajam tanto. Eles vão conhecer outros lugares. Claro, que não é só isto. Não são rosas estas viagens. Digo isto no sentido de quem olha de fora para nós como referência. Depois num nível mais amplo, a forma de medir isso também passa pelas notícias dos jornais e como os jornalistas se referem ao nosso trabalho. No inicio, nas reportagens publicadas em 2002/3, os títulos eram sempre: os deficientes vencem a barreira do palco, ou deficientes superam barreiras. O foco das manchetes estava na deficiência em si. À medida que o tempo foi passando, foi mudando e o foco agora está na dança propriamente dita e isso é uma forma de medir como os outros nos olham.
Dos espectáculos que montaram ao longo destes anos, qual foi aquele que marcou o grupo na sua dinâmica e a si como coreografo?
HA: Procuro enquanto director artístico sempre criar um desafio novo aos bailarinos em cada espectáculo, porque senão não tinha graça. Você já sabe o que vai fazer e por isso procuro dar o próximo passo na criação, tendo esse factor em consideração. Acho que cada um difere um do outro por causa disso. Pretende-se dar espaço. Mas, acho que o trabalho da Clara Andermatt, levanta os braços para o céu, uma criação de 2005, foi muito importante para o grupo enquanto instituição e para cada um dos bailarinos a nível pessoal.
Porquê?
HA: Acho que no trabalho desenvolvido pela Clara, cada interprete teve de constatar com a sua diferença, ou com a sua limitação e não falo apenas dos deficientes, falo de todos. Cada bailarino teve de lidar com as suas dificuldades pessoais, devido ao processo de criação dela. Então, como expor esse corpo com uma deficiência física? E não é porque não o fizessem antes, foi a forma como foi exposto. Antes ele era exposto, porque estava ali. A Clara fez um jogo que era mostrar isso mesmo, querer enfatizar essa diferença. Tinha a ver com a obra dela e com a sua proposta coreográfica. Então isso acabou por demonstrar que tens de estar bem contigo próprio e poder passar isso para o público. Acho que foi um upgrade para o grupo. Na criação da Clara toda gente cresceu muito, porque tivemos que lidar com as dificuldades enquanto pessoas, para depois como interpretes passar isso para o público.
Foi uma catarse para o grupo?
HA: Acho que chegou mesmo a ser isso. Não numa vertente desorganizada, caótica e que ninguém sabe o quê, mas foi importante, porque mexeu com o que não estava bem. Tomar contacto com aquilo que não gostas no teu corpo e com a tua dificuldade. A coreografia dela ainda está em cena até hoje, desde que foi estreado em 2005.
Vão intercalando com os outros projectos?
HA: Nós somos uma companhia de repertório. Temos várias coreografias que podemos dançar ou não. O trabalho da Clara foi alvo de uma remontagem em 2007, porque houve substituições no elenco. Há programadores que querem ver esse espectáculo e pessoas também. Foi um trabalho tão intenso para os bailarinos que continua muito presente, muito vivo e acho que era isso que ela queria passar. Daí que este trabalho tem uma vida longa, ela conseguiu tirar dos interpretes tudo do que tinham de melhor para aquela obra e queria mostra-lo. Por isso, consegue-se manter as características desse repertório até hoje.
Qual é o feedback que tem dos espectáculos fora de Portugal, tendo em conta que a maioria das pessoas não sabe sequer onde a Madeira fica?
HA: Eu falo muito pouco sobre esse assunto nas entrevistas, por ter medo de ser mal interpretado. Nós temos um grupo que obviamente faz um trabalho com um foco na mudança das mentalidades e discriminação. Eu acho que nós somos os unificadores de todos os preconceitos, porquê? É um grupo dirigido por um brasileiro, com deficientes, provenientes da ilha da Madeira. À partida reunimos todos esses preconceitos. Quem contrata o dançando com a diferença conhece o nosso trabalho e respeita esse percurso. Muitas vezes lidando com o público, com outras pessoas que estão ligadas à produção e dos teatros damo-nos de conta desse preconceito. Mas, tudo muda depois do espectáculo. Na parte técnica, por exemplo, por vezes é caótico, questionam a necessidade de usar tanta luz e tanto equipamento, porque deduzem que não o sabemos usar, os deficientes não precisam deles, mas outro tipo de grupos sim. Então há um tratamento que é difícil, mas carregámos esse peso do preconceito todos juntos. Eu não me importo e toda a gente que trabalha comigo sabe disso. Quem está nos bastidores lida mais com esse aspecto do que os bailarinos, de alguma forma tudo isso é muito mais filtrado no caso deles. Nós fazemos o nosso trabalho e a mudança vem depois do primeiro ensaio, é radical. Ah! Afinal vocês sabem usar as luzes de recorte e necessitavam de todo esse equipamento em cena. Os deficientes sabem usar a luz, embora esta é uma questão inerente a qualquer bailarino. Lidamos com isto sempre, mas é assim que mudamos as mentalidades, mostrando qualidade e competência. Não basta dizer, não me trates assim! Deixe-me fazer o meu trabalho, faça o seu e depois conversámos.
No meio profissional da dança, também notou isso? Tendo em conta que embora seja coreografo e interprete, não tem formação específica nesta área.
HA: Também se nota, mas menos e cada vez mais é residual. Neste universo de 10 anos tudo isso mudou radicalmente. No começo, ninguém sabia quem era dançando com a diferença. Ninguém me conhecia. Isso era muito evidente. Com o tempo fomos sendo reconhecidos e trabalhámos com pessoas conhecidas, passaram a olhar para nós de forma diferente. Mas, o preconceito existe, para algumas pessoas do meio, até hoje. Consideram que o que fazemos não é dança, que é teatro, terapia, qualquer outra coisa, menos dança. Eu não me importo, porque as pessoas têm de ter abertura suficiente para ver o que está em frente, com os seus próprios olhos. É problema deles, não é meu.
As várias coreografias que foram criadas ao longo deste 11 anos, de que forma contribuíram para o grupo em termos evolutivos?
HA: Eu enquanto coreografo do dançando com a diferença, deixando de lado as funções de director artístico, tento evitar criar espectáculos, porque eles trabalham comigo diariamente. Eu dou aulas e estão comigo no escritório, fazemos tudo juntos. Estão saturados de mim. Ao fim destes 11 anos sabem qual é a minha forma de pensar e de mexer. Enfim, a base do acervo motor deles foi construído comigo e por mais criativo que seja, acabo por ser previsível e há momentos que se repetem. Esse aspecto, por outro lado, acaba por diferenciar o trabalho dos diferentes coreógrafos. Tento por isso evitar coreografar. É importante para eles terem experiências novas, trabalharem com outros profissionais e não só comigo. Eu decido criar quando? Crio por necessidade, por diversos motivos. Se olharmos para a primeira fase do trabalho desenvolvido pelo grupo, que abrange o período entre 2002, em que estreámos a nossa primeira criação que foi 9 por 9, até 2007 foi eu que coreografei, as minhas criações estão centralizadas nesse hiato de tempo, porque ninguém conhecia o meu trabalho, nem o grupo. Por isso, ninguém queria trabalhar connosco. Foi difícil romper essa barreira e nessa primeira fase há muitos coreógrafos brasileiros, o Henrique Rodovalho, a Ivone Satie e a Carolina Teixeira. Depois tivemos o Ricardo Mendes e a Juliana Andrade que eram bailarinos do próprio grupo e criaram um trabalho coreográfico.
No Brasil existe um trabalho pioneiro nestas áreas?
HA: Há um trabalho muito à frente e muito mais reconhecido do que em Portugal. Lá eu criei uma companhia de dança e dei acessória numa outra. As pessoas que coreografaram para o dançando com a diferença nesta primeira fase, conheciam-me no Brasil, eram profissionais com quem eu já tinha trabalhado. Por isso, foi muito fácil pedir que criassem coreografias. Entrar no universo dos coreógrafos portugueses foi mais difícil e aí necessitamos de esse espaço anterior. A menina da Lua foi um acaso mesmo. Surge num contexto de improvisação em que não conseguia dar a aula para a Bárbara e a estratégia foi dançar com ela sozinho e daí nasceu essa coreografia. Foi uma criação que me marcou muito. Depois, há as encomendas específicas, que é mais fácil que seja eu do que outro coreografo e porque quero fazer. O Grotox foi um convite da Casa da Música e foi o primeiro momento em que pensei num espectáculo apenas como coreografo, esqueci o resto, foi mais egoísta, pensei só em mim.
A evolução também resultou em projectos mais complexos, os primeiros eram mais simples.
HA: Exacto. Isso resultou da maturidade do grupo. Com o desenvolvimento do projecto. O Grotox é muito mais complexo nesse sentido, porque tem uma componente de música ao vivo e de vídeo muito forte e só foi possível fazer esta produção, porque a Casa da Música deu-nos acesso a esses recursos técnicos, que de outra forma não teríamos. Foi um passo além. Gostei muito de fazer esse espectáculo e agora mais recentemente, a máquina letal com o psico-ballet Maite León de Madrid. Este projecto está inserido nas artes globais. Esse criei e desenvolvi com este grupo em diferentes fases. Depois eles vieram até cá e juntámos os dois trabalhos, o que eu tinha feito para eles e o de dança com a diferença. Esse é o que temos em cena e que queremos levar para fora.
Em que máquina letal se distancia dos outros projectos do grupo, sem focar a componente do psico-ballet de Madrid?
HA: No Grotox tivemos a participação de outras pessoas, músicos da própria Casa da Música e do grupo musical quinta pancada, que é constituído por jovens com paralisia cerebral. Não havia uma troca em cena directamente. Com o psico-ballet é diferente, jogámos com os intérpretes das duas companhias, estão misturados e dançavam juntos. Isso é muito diferente, porque você está habituado a dançar com aquela pessoa, aquele corpo. Foi uma experiencia muito rica, porque os elementos dos grupo estavam convencidos que podiam aprender com os outros. O psico-ballet aprendeu com dançando com a diferença e vice-versa. A troca de intérpretes, de aprendizagens e culturas foi muito enriquecedor.
Qual é o futuro do grupo dançando com a diferença, para os próximos anos, sem contar com a profissionalização, qual é a sua visão?
HA: A internacionalização do grupo que começamos a cerca de sete anos e acho que estamos conseguindo. A curto prazo vamos consolidar o nosso espaço e nome no meio internacional. Esse é o próximo passo. É importante para conseguirmos alcançar um status, uma posição dentro do mercado da dança contemporânea e fazer mais. Isso confere uma maior estabilidade ao grupo. Um segundo passo, mais a médio e longo prazo, e não depende apenas nós, é transformar a Madeira num pólo de dança inclusiva. Saindo do meio do Atlântico que sabemos o quanto é isolado, para chegar as pessoas que não conhecem a ilha e neste âmbito, nós conseguimos ser uma referência. Fizemos um evento o ano passado, que foi o Inclu dança, em que estiveram presentes pessoas de sete países, que vieram até cá para saber o que se fazia em termos de dança inclusiva. Enfim, não sei ainda bem o quê, mas talvez uma escola, um centro, ou um espaço para ensinar aos outros aquilo que sabemos fazer melhor. Juntar todo o nosso acervo de livros, pesquisas, material didáctico e humano para ajudar os outros.
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