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O guardião da palavra

Escrito por 

Urbelino Ferreira é um dos membros da actual direcção da associação de escritores da Madeira e uma figura da actividade cultural na Madeira. Nesta conversa, falámos do organismo do qual faz parte, de escritores e como não podia deixar de ser de livros.

Porque houve a necessidade de criar uma associação de escritores da Madeira (AEM)?

Urbelino Ferreira: Bem, à época, já lá vão dois decénios, (não me recordo da data exacta da fundação da associação) os fundadores sentiram a necessidade de criar uma organização, de raiz cultural, com escritores de diferentes áreas: jornalismo, literatura, professores universitários, e outras, alguns deles, já como livros editados. No pós-25 de Abril, houve essa urgência de estar organizados. Criaram a associação de escritores da Madeira para estarem reunidos e criar planos de desenvolvimento cultural.

Também pesou o facto de sermos ilhéus e estarmos longe dos grandes centros urbanos, ditos mais culturais?

UF: Quanto à questão do isolamento, penso que não: teve mais a ver com o movimento organizativo que a revolução de Abril gerou, através da liberdade de reunião, de expressão, de manifestação, etc. Embora houvesse uma distância territorial – que continua a existir -, criou-se o espírito de associação, uma espécie de onda criativa que impelia à criação de clubes, organizações e associações de diferentes áreas, já que, na ditadura, havia medo de formar esses organismos. Nesse tempo, os participantes da cultura, de todas as áreas, lá iam escrevendo textos e livros, onde não se dizia tudo, por impedimento da censura.

O que mudou nesses vinte anos na associação de escritores da Madeira? O que melhorou e piorou?

UF: O que melhorou, baseado numa análise organizativa, desde há meia dúzia de anos, após a morte do anterior presidente, foi ter havido eleições, o que nunca tinham existido, anteriormente e ter sido criada a sua sede: foi, fundamentalmente, o que mudou. Não obstante, não quero dizer que, no antes e depois pós-morte de José António Gonçalves, houvesse melhorias de âmbito e dinamização cultural. Existiram alterações na concepção organizativa da associação, mas não na participação cultural. José António Gonçalves, independentemente de não ter esse espírito de organização interna, funcionava como que não havia necessidade disso, porque era muito liberal e possessivo; era um mentor da cultura; ele criava, participava, desenvolvia projectos e organizava eventos culturais, ao longo do ano. Por todos esses motivos, ele ultrapassava essa concepção organizativa. Ainda assim, era muito mais produtiva, porque o José António Gonçalves era um actor cultural: dia e noite, fazia cultura. Até na mesa onde se sentava, gerava ambientes de cultura, provocava os convivas para ela, e até oferecia os livros que publicava. Era uma constante da sua vida. Após a sua morte, e depois das eleições e de órgãos eleitos, algumas disfunções e atritos, no seio da direcção, geraram uma descontinuidade. Houve esse início, organizativo, sede própria e um conjunto de participações; houve, até, a ideia de criar um órgão de opinião, para análise de novos livros e autores, o que não chegou a ter efectividade. Houve visibilidade organizativa, reuniões de direcção, mas o plano de actividades sofreu muito, com desavenças internas. Neste segundo mandato, do qual faço parte, a situação agravou-se, completamente, porque nem chegou a haver, no órgão executivo, uma reunião, sequer. Não se aprovou nada: plano de actividades, contas, etc., e extinguiu-se a visibilidade cultural, com excepção do “encontro às quartas-feiras”, que durou poucos meses. Esse encontro era uma reunião com figuras da política, do meio literário ou das artes, e que foram, apenas, uma meia dúzia; além disso, nada mais foi produzido, até hoje.

Falando de escritores, afirma-se que há muito pouco qualidade literária em Portugal. Nos últimos 20 anos, publica-se de tudo, é essa a realidade?

UF: Eu devo cingir-me, em exclusivo, ao panorama madeirense. No pós-25 de Abril, com a liberdade de expressão, há muitas pessoas que gostam de ler, de comprar livros e escrever; as que tinham os chamados «textos na gaveta», quiseram, e bem, publicar e expressar as suas “opiniões”. Temos tido a publicação de livros, em diferentes áreas: romance, poesia, conto e outros estilos literários, mas, do meu ponto de vista, têm, efectivamente, pouca qualidade; daí, querermos implementar o tal órgão de selecção e valor literário. Com a chamada editora “o liberal”, tem-se publicado muito, muita “coisa”, muitos livros, mas, alguns, não têm muito valor cultural. É a minha concepção!

Pessoal?

UF: Não só pessoal, mas, também, como leitor compulsivo, que conhece uma grande diversidade de estilos literários. Continuo a ser um grande defensor dos Mestres. Quando se sai do Eça, Camilo, Torga, Pessoa, dos nossos clássicos, embora goste de alguns jovens autores, como por exemplo: Melo, Pires e outros, e dos autores africanos e sul-americanos, como Garcia Marquez, Jorge Amado, Assis, etc., quando leio livros que fogem dessa norma rígida, de valor cultural e intelectual, perco o interesse de os acabar de ler. Para mim, um simples conto, uma história, um poema, seja o que for, obrigatoriamente, tem que ter uma mensagem para a sociedade, e vejo tantos que não tem nada mensagem e conteúdo. Tentam, é, copiar o estilo de outros; não são plagiadores, mas pensam que, dessa forma, podem ser grandes escritores, como esses Mestres. Há muita coisa publicada, sem valor. A responsabilidade é de quem edita, não do autor que escreve e apresenta ao editor. Uma verdadeira editora, tem de possuir um grupo de pessoas que aconselha e avaliza, atribuindo, ou não, valor cultural a uma obra. Esses parâmetros devem ser respeitados. Esta questão de ter muitos livros publicados, sem valor estético, linguístico e cultural, é da exclusiva culpa de “o liberal”. Eu não tenho nada contra essa gráfica, já que tem contribuído para a publicação de autores madeirenses; existe esse lado positivo. Por outro, tenho de lhe retirar esse crédito, quando edita livros com fraco valor cultural. Esses livros, só servem para satisfazer o ego do autor. Faltando-lhe a principal tarefa – a da distribuição -, só posso denominá-la de gráfica.

Os ilhéus, em particular, os madeirenses e açorianos, têm uma tendência maior para escrever poesia, ou não? Tem a ver com a sua essência?

UF: Compreendo isso, dentro da terminologia ilha. Para uma pessoa que tem o dom da escrita e escreve, tanto pode viver numa ilha, em termos geográficos - território circundado por água -, como num espaço continental. Temos vários tipos ilhas, até do ponto de vista habitacional. Concretamente, respondendo a pergunta sobre os poetas, quer sejam da Madeira ou de outras ilhas, a distância de continentes, o isolamento, a introspecção, o delimitado horizonte físico e psicológico, são factores que alimentam a revolta, a mensagem, o estilo, a dor… Um poeta que vive numa urbe, sem esses limites físicos, na minha opinião, escreve sobre outros temas, sejam culturais, sociais, politicas e económicas, mas menos de amor e sofrimento.

É a ideia do escritor sofredor?

UF: É essa ideia de “sofrimento”, por não estarmos de acordo com as situações sociais, desumanas, políticas, em suma, pela humanidade. É a consternação, a revolta, a ira social, que leva o poeta a estar contra, intervindo através da escrita. A sua arma é o poema, a escrita, com todas essas contradições. Claro que, vivendo numa ilha geográfica, rodeada de mar, quer seja circundada pela cidade ou por um bairro e, ao mesmo tempo, uma ilha em si próprio, o poema é a sua forma de participar na sociedade, do ponto vista civil e cultural; é isso que o leva a escrever. No caso particular dos madeirenses e outros ilhéus, é nessa revolta permanente, resultante do isolamento e do limite, que a veia nasce, e a vontade de transcrever para o papel obriga. É a sua forma de comunicar, é a sua espingarda, ou outras armas.

Quais são os autores a que recorre com frequência? Que estão sempre presentes?

UF: Já ouvi essa pergunta, de muitas pessoas; não querendo ser diferente de outros, mas coerente, afirmo que não tenho um livro especial. O meu apoio literário não é feito numa única obra: podem ser dois ou três livros de um determinado autor. Recorro, sempre, aos mestres do romance, da filosofia e da poesia. Em função do que pretendo ler ou escrever, e da mensagem que pretendo transmitir, vou beber nos autores consagrados, nos Mestres – como dizia, antes -, até à antiguidade clássica, aos gregos, até Platão, se for necessário. Não tenho, propriamente, um livro, sou muito pela fidelidade, pela verdade, quando quero transmitir com qualidade fundamentada, uma mensagem. Vou buscar Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e outros, que têm tantos romances e novelas, para recordar uma determinada situação como eles escreveram, como criticaram a sociedade. Eu gosto de reler obras, mas também leio novos autores. Quando vou à prateleira, não é, tão só, pelo prazer de reler o autor, pode ser para reavivar a importância daquele texto, naquela época. Mais, serve-me como termo de comparação. Gosto muito da história comparada: o que se escreve hoje, do ponto da vista da informação, da política, etc., e o que se escreveu há duzentos ou cem anos; e, se tivermos real atenção, chegamos à fácil constatação, de que determinado autor, dizia a mesma coisa dos governantes e da posição do povo, há séculos. Se compararmos esses textos com a realidade de hoje, ou de há dois anos, encaixam como um chapéu à medida.

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