Nas tuas viagens alguma vez sentistes alguma dificuldade acrescida? É porque és pequenina e franzina. Tens um ar frágil!
Não dão por mim.(risos) Uma vez encontrei um amigo meu, estava na véspera de partida para Marrocos e ele disse-me: Ah pá, esta mulher, és tão pequenina e vais a todo o lado. E eu pensei o que uma coisa tem a ver com a outra?
Eu nunca senti dificuldades sem ser um, ou outro azar. Situações que aconteceram, mas tudo bem a fim ao cabo. Mas, sim os perigos espreitam. Dificuldade não senti, sinto que estou muito alerta quando estou a viajar. Estou sempre com os meus sentidos apuradíssimos e se vou numa calçada e na minha direcção estou a farejar um problema, estou a sentir que algo pode correr mal, eu mudo de passeio. É a minha técnica, não arrisco minimamente. A dizer as coisas como são, eu sei que quando viajo sozinha não posso fazer algumas coisas se estivesse acompanhada. É uma limitação, sem dúvida. Para mim correram sempre bem, mas houve sítios que me meti sozinha, há uns anos e que agora nunca o faria, foi mesmo a incoerência da juventude. Correu tudo bem, mas andei perdida nas montanhas durante vários dias sem ninguém. Podia ter corrido mal para qualquer pessoa, seja homem ou mulher. E por isso, acho que é preciso ter cuidado.
Depende muito da tua atitude em viagem, eu não vou dar de caras com o problema, se tal acontecer rapidamente fujo dali. A técnica, se me permites, é nunca chegar ao momento, a inevitabilidade do combate, nunca chegar a esse ponto, de pernas para que te quero e correr dali para fora numa situação qualquer. Tens de te munir de armas e saltar fora antes disso e por isso nunca tive muitos problemas. Por exemplo, no outro dia estava a falar com um amigo meu que esteve em Machu Picchu. Ele fez a viagem até lá de uma maneira completamente fantástica, ele e um amigo. Eu fi-lo sozinha e nunca poderia tê-lo feito como eles o fizeram, porque era impossível como mulher. Ele foi de bicicleta, desceu a montanha e atravessou a linha do comboio de Águas Calientes que é famoso, porque é o acesso até Machu Picchu e fez os carris a pé. Lá está, tenho capacidade física para fazer isso, mas sozinha nunca seria capaz.
Achas que há uma escrita de viagem feminina? Consegues antever a diferença numa escrita tua e os relatos também de viagem, desta feita de escrita por um homem?
Eu acho que a sensibilidade feminina fica muito evidente na escrita. Quando a tens, porque há pessoas que a tem mais apurada. Mas, acho que sim, que existe a escrita de viagem no feminino. De qualquer maneira não acho que seja uma vantagem.
Eu reparei que na tua escrita tu preocupastes em falar nas condições de vida precária dessas gentes, para além da cultura, porque nessas zonas onde estivestes as condições de vida são muito duras, as pessoas vivem no limiar da pobreza. E esse facto não se nota nos escritores masculinos.
Tem a ver com a sensibilidade. Não sei se é por ser mulher, ou a Raquel, ou se é por ser portuguesa. Sei lá, não sei, porque é que é. A mim o que me interessa e já disse isto algumas vezes, para a história, um lema da minha crónica de viagem é que as pessoas possam ver o que os meus olhos viram. E nesse aspecto, a minha descrição da minha “personagem” dentro da história é importante. Eu tenho um livro, em que sou a personagem que é o “vento dos outros” que é um livro muito interessante, como diz o Rui Zink, os meus livros são os maiores. É mesmo muito interessante, porque se gostastes das crónicas vais gostar deste. É um livro que entra mais no romance, nas aventuras que tive. E o meu esforço sempre foi, o fio condutor, era não “comer” a história, porque era o que me estava a acontecer. E não eu em si.
E voltando a tua pergunta, a sensibilidade feminina numa escrita de viagem acho que se nota muito. Pode não ser uma vantagem quando transformamo-nos nas personagens principais, porque estamos avassaladas pelo que nos está a acontecer e pelo que estamos a ver. E estou a referir-me a crónica de viagem enquanto literatura e não como jornalismo, a reportagem de viagem. Se não a segunda, nem pensar sermos a personagem, na crónica de viagem é importante termos esse cuidado de não sermos a personagem, porque a viagem em si é que é o protagonista. E a minha linha é essa, sou o fio condutor. Sou o espelho do esta a acontecer, mas também queria que as pessoas pensassem e se me estivesse a acontecer isto como a ela está a acontecer, em vez de, e olha o que lhe aconteceu. Prefiro que as pessoas concebam o que lhes poderia ter acontecido, do que propriamente estarem a ver a minha experiência em si isolada.
Os homens consideram-te intimidante? Quando algum deles te pergunta o que fazes? E tu dizes que escreves crónicas de viagens.
( risos)Depende que tipo de homens. Temos muitas culturas e muitos tipos. Há homens que ficam fascinados, há daqueles que acham ridículo e há ainda aqueles que são indiferentes. Eu acho que é uma excelente conversa de engate: estivestes no México? Eu não conheço. Acima de tudo, é um tema muito universal e quem não gosta de viajar, gosta de ouvir o que tu vistes nestes sítios. Estava a brincar! É um grande desbloqueador, já tive grandes conversas sobre viagens que foram muito para além dos trajectos. Eu dou-me muito bem com rapazes, sempre dei. Foi escoteira durante muitos anos. E os meus melhores amigos são rapazes. Eu não a sinto e não faço de maneira que a sintam, bem pelo contrário. Esse é um dos meus outros lemas de vida, não há tempo a perder. E gosto de conhecer as pessoas por aquilo que elas são, o que ela é, mas as vezes sim há homens que chamam a atenção pela maneira como olham.
Qual das viagens que fizestes, aquela que gostastes mais?
É a pergunta mais horrível que me podem fazer. E fazem-nos muitas vezes. Só tenho viagens boas e nunca muito más. Eu tive choque cultural.
Onde foi isso?
Onde senti mais isso foi no Peru. Eu fiz uma viagem que não lembra ao diabo. Eu olhei para o mapa e decidi ir do ponto A ao ponto B, e toda a gente faz o litoral, mas como eu gosto de montanha fiz uma linha recta. E nunca me passou pela cabeça que em termos de transporte era o mais difícil deste mundo. Eu andei de São Pedro de Casta a Arequipa e desta localidade para Cusco foi assim uma linha recta muito, muito difícil. Foram vários dias onde não existia nenhum estrangeiro e sobretudo a relação que tinham com pessoas de outra cultura, e como digo isto, foi a única altura em que senti que era completamente invisível. As pessoas sentavam-se no nosso colo no autocarro. Era como se não nos vissem. Escarravam, espirravam para cima de ti. Foi algo muito esquisito. Tudo cheirava mal, as pessoas, o hotel. Roubaram-nos. E isso foi choque cultural, porque não te sentes confortável com nada. E atenção que eu adorei a viagem ao Peru! O choque cultural de ódio passa a amor. Mas, sim esses momentos foram duros. Mas, há duas viagens que me marcaram, uma a América do Sul, já lá estive três vezes, na primeira foi durante seis meses, e onde fiz amigos para a vida e onde me sinto muito bem recebida.
E depois há um sítio onde lá vou, porque sinto essa necessidade que é a Índia. É um território muito apaziguador, é como ir à terra. Não sei porque, não tenho raízes lá. É onde sinto que sei quem sou, às vezes esqueço-me. A Índia devolve-me o centro. Também já uma história, este país já me deu muita coisa. E foi a minha primeira viagem. É um sítio com pessoas encantadoras. E é tudo muito instintivo. E eu entro nele de olhos fechados. Eu e os indianos dámo-nos muito bem. É algo muito etéreo de se falar, mas a índia esta a mudar e se calhar não é como era em 2001 e se calhar em 1960.
Aterra-se na Índia e há algo que é evidente a troca de energias, de empatias que é evidente. A troca de presença de espírito de cada um, chamemos-lhe espírito, chamemos-lhe o que quisermos, e esse presença as pessoas não estão tão atentas a isso. Estão mais atentas a comunicação e ao que é o dito, a linguagem verbal, ali não, ali é ao que vais. É muito rapidamente de entender ao que vens, como o taxista para te chular e levar o dinheiro, e também é muito rápido para eles entenderem que não estou para esses filmes. Eu só quero isto e não levas isto, sem ter necessidade de falar. E assim a viagem torna-se fácil. E eles tem estruturas muito boas, os comboios, etc. Isto é uma comunicação mais verdadeira, do que aquela de ser simpático por simpatia. Aquilo está lá, nós sentimos que aquela pessoa quer aquilo de ti. Bom ou mau. E isso para nós ocidentais que somos muito cerebrais, se soubermos usar essa empatia espiritual que ali está muito a flor da pele é algo que pode ser recompensadora. Torna tudo mais fácil, para mim.
É muito por empatia espiritual. Não é o que me dizes, o que aparentas, é mais a energia com que chegas. A maneira como tu própria manipulas a energia dos outros. É um jogo bilateral e pode parecer estranho, isso na Índia é normal. As pessoas que não se apercebem disso, são aquelas que tem péssimas viagens. E só há dois tipos, a maravilhosa e péssima, por causa dessa falta de sensibilidade. São assim, não são como cá, não é? Para mim é um jogo de presença fascinante.
Estivestes nos Açores, que ilações retirastes dessa viagem?
Eu fui para lá com grandes expectativas superei-as todas. Existe algo nos Açores mágicos que não capta, ao nível físico, é um sentir imenso, é um território achei ate místico e achei que tinha uma áurea que me fascinou. Depois do ponto vista da natureza, foi fascinante, fiz norklin, fiz surf e fiz tudo o que podia. Fiz umas caminhadas e foi óptimo. E estive nos três grupos. Visitei Flores, Terceira e São Miguel. Cada um mais diferente que os outros. Mas, vou destacar as Flores, é um sítio que era a própria natureza a brincar comigo e a pregar-me partidas. Fui às Sete Lagoas e estavam todas cheias de neblina nos dois dias que lá estive. Imensos caminhos sem saída. Parece que era a própria natureza a dizer-me vai para ali, parecia que era natureza a querer meter-me numa alhada. E achei que as Flores era um pedaço de terra surreal, parece que estava num sonho. Atenção que não estava drogada! É um sítio diferente, parece que já não estamos cá, nem lá. Não é Europa, pertence a placa americana. Parece um território á parte, que não está preso ao chão. De uma forma concreta foi dos sítios que estive, o mais bonito que visitei na vida. De facto, a beleza é fabulosa, as pessoas são de uma simplicidade e simpatia que a mim me agrada e tem uma grande vantagem comparada com outras ilhas, muito facilmente sais da zona urbana. São ilhas que apesar da sua dimensão, consegues facilmente isolar-te. Consegues esquecer a cidade na ilha. Ali conseguimos estar sozinhos. Nos Açores podendo eu voltaria todos os anos, porque tem tudo o que me agrada para me divertir.
Consegues distinguir a essência de um ilhéu de alguém que não o é? Há um conjunto de características que os distinguem?
A uma coisa gira num ilhéu que é ele olha para ti como uma certa desconfiança irmanada com uma curiosidade fora do comum. E é um tipo mais metido para dentro. Um ilhéu tem aquele olhar de quem já viu tudo, aquela calma e uma certa distância. E tem uma curiosidade de saber o que fazes e que é mil vezes mais genuína. Eu não noto nenhuma diferenças entre um açoriano e um do continente, porque para mim Portugal é uma ilha. Quem mora no litoral é como viver numa ilha, já a posição geográfica nos remete para essa ideia. Não temos relação quase nenhuma com a Espanha. E eu sinto que isto de ser ilhéu é já uma característica nossa.
O que eu achei interessante nos Açores é como eles se sentem diferentes dos do Continente, não por serem ilhéus, mas por serem Açorianos. E percebo, porque eles se sentem assim. A cultura é muito diferente. Eles são mais descontraídos comparados com o resto, levam tudo na boa, vai-se fazendo. Nós estamos sempre atrasados para tudo, estamos mais contraídos para tudo, levamos mais tempo a confiar nos outros, é uma característica muito portuguesa.
Escrevestes também sobre Cabo Verde, mais especificamente sobre um músico o Bana, porquê?
O Bana é, e isso está consagrado, a história vai consagra-lo como o maior músico de Cabo Verde. Ele não é compositor, é interprete. É incrível, aquele homem nasceu para cantar e eu de repente eu tive necessidade de contar essa história. E isso tem sido uma constante na minha vida, de não for eu a conta-as elas perdem-se. Eventualmente, não há ninguém que tenha a oportunidade de o fazer. O meu próximo livro é uma biografia de uma personagem que tem uma história que não foi contada.
O Bana tem relevância que tem e é muito, muito, muito porque me obrigaria a ir para Cabo Verde, que chatice! (risos). É um dos destinos de eleição.
Mas, como chegastes até ele?
Fui um amigo mútuo que mo apresentou com o intuito de escrever a sua biografia. E eu já tinha escrito um livro, nunca uma biografia. O seu percurso fascinou-me, porque era um órfão, pobre e descalço, que tinha uma única coisa que o distinguia dos outros meninos pobres e descalços que era uma voz extraordinária. Começa a ser apadrinhado por um dos grandes compositores cabo-verdianos que é o B.Leza e a partir daí lançasse numa carreira.
Cabo Verde é um território que me fascina. Eu tenho muito a tendência de nadar, meter-me em águas muito revoltas, mas sabendo que não perco o pé por muito tempo. É a minha postura na escrita. Vou tentando, estou nesta fase muito experimental, mas eu sei que está ali uma bóia. E ser em território lusófonos é essa bóia, todos esses países sapo fonte de criação quase inesgotável. E eu achei que era a melhor maneira de me meter com Cabo Verde era ter esta história para contar. Os cabo-verdianos agradeceram e eu agradeço também a esse povo terem – me aberto as portas como deves imaginar. Fui a Cabo verde pela primeira vez, abrir as portas que me foram abertas, foi muito recompensador.
Como é ser ilhéu em Cabo Verde é diferente?
É, eles são cabo-verdianos. Eu reflecti muito sobre isso no livro, que para mim é um tema fascinante que a mulatização da vida. Cabo Verde é um laboratório de gente e de raças. E aquilo deu uma mistura incrível. O que se reflecte na idiossincrasia dos cabo-verdianos sendo que são 10 ilhas, cada uma diferente uma da outra. Dez personalidades distintas, eles próprios sentem e revelam essa diferença entre a ilha Brava e São Vicente, entre Santiago e o Fogo. É engraçado porque são características da personalidade e físicas.
O da ilha do Fogo tem normalmente os olhos azuis. E são diferentes porque tem tudo a ver com a colonização. De grosso modo esquecendo muita gente, era a ilha da Guiné, a ilha dos escravos, que é Santiago. Eram apanhados pelos portugueses e depois acabaram por misturar-se com portugueses. Mas, não éramos só nós, Cabo Verde teve muita importância em termos de telecomunicações e era um porto muito importante na navegação a vapor, então montaram-se ali vários escritórios de italianos e ingleses. Sobretudo italianos. E todos se mesclaram, é mesmo um laboratório de como os genes se misturados podem produzir pessoas tão diferentes, interessantes e inteligentes. Depois há toda uma cultura que não consigo resumir, que tem uma pitada portuguesa, mas que tem de tão pouco ao mesmo tempo, que é original. É tão altamente redutor dizer, eu moro na ilha do Fogo e que os cabo-verdianos são uma raça criada pelos portugueses.
É toda uma cultura que misturada com o sentimento de ilhéu. Cabo Verde é muito original. Sendo África, não é África. Não sendo Europa também. São muito civilizados, no sentido civilizado europeu, mas dentro das próprias ilhas, as elites são uma coisa, o pessoal das barracas, o mais pobre tem uma agressividade e um modo de estar mais badio. Eles são descendentes dos antigos escravos que fugiam para a montanha e se conseguiam libertar. Um modo estar badio não é muito africano, mas é muito tribal ao mesmo tempo. Portanto é muito complexo. É isso que lhe dá o interesse. E ainda por cima falam a nossa língua. Falam o crioulo, claro, mas quase toda a gente fala português. E eles dizem uma coisa muito gira, há os cabo-verdianos, os de lá, os estrangeiros e os portugueses. Eles não são de lá, mas também não são estrangeiros. E é essas relações históricas e que para nós nunca nós vai passar ao lado. É tão bom ser português onde se vai e não ser americano, e isto nos pós onze de Setembro.
O português é sempre bem recebido, até com uma certa piedade, porque somos pobretanas. Isso é altamente. É simpático da parte de quem nos recebe, porque não olham para ti, como fonte de euros igual ao um sueco. E a nossa posição em Cabo Verde é muito grata. Eles são hospitaleiros, e eu acho que somos muito bem recebidos. E estamos ali numa plataforma de entendimento que é uma vantagem. Até do ponto de vista económico e político temo-nos de virar para os PALop’s, não é só a língua. Há uma empatia histórica e pelos vistos, felizmente, está a perdurar por cima das fricções coloniais, com tudo o que aconteceu. Péssima descolonização diz-se que não se podia fazer melhor, claro que se podia fazer melhor. E ainda vamos a tempo de corrigir algumas coisas para ficarem bem-feitas.
Referistes a pouco que estavas no meio de um projecto, podes falar-nos um pouco?
É uma biografia sobre uma senhora de 90 anos, portuguesa. Não é muito conhecida pelo público em geral, mas é de uma família conhecida e é tipo a nossa Joana de Arc portuguesa. E só posso adiantar que vai ser publicado este ano.
E as crónicas de viagens?
Em princípio no terceiro trimestre deste ano volto as crónicas de viagem. Vou para o Oriente em parte incerta por agora. Índia, Sri Lanka, por aí. Entretanto, vou à Croácia apresentar o meu livro, “a casa comboio”. Aos Açores em Julho e tudo em trabalho, mas tenho que fazer por agora porque fazem parte do meu percurso. Se tudo correr bem, uma viagem grande no final do ano, Setembro ao Outubro. O Oriente alargado.
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