
Tem uma narrativa invulgar que prende o leitor desde o primeiro momento. É uma experiência já que não se limita à escrita, é ilustrado e até os caracteres mudam para dar maior ênfase á narrativa. É uma metáfora sobre o bem e o mal e que nos obriga a pensar e surpreende a cada capítulo.
Este livro tem um fio condutor muito invulgar. A história que dá o título está lá no meio, mas não percebemos muito bem como surge a ligação e depois temos uma surpresa. Quando o começastes a escrever tinhas essa ideia em mente?
Afonso Cruz: Sim, o conteúdo sobre a história da boneca de Kokoschka é real. O pintor Oskar Kokoschka mandou fazer uma réplica da mulher que amava, a Alma Mahler. É uma história muito romanesca, muito insólita e única, acho eu. Achei que era uma boa metáfora para uma série de coisas que vivemos na vida e portanto acaba por ser esse o pano de fundo para tudo o que acontece no romance. Há uma série de personagens que funcionam como essa boneca.
Seleccionastes vários tipo de letras para este mesmo texto, porquê? Eram importantes em que sentido?
AC: Este é um livro dentro de outro livro. Portanto, muda porque é outro. Tem uma capa e uma sobrecapa, como se fosse outro livro. Depois muda porque tem umas cartas que são importantes, tinha que parecer como se tivessem sido escritas por uma máquina de escrever e há uma outra parte que era necessário distinguir, porque é narrado na primeira voz e por isso é diferente do resto.
Porque escolhestes como pano de fundo a segunda guerra mundial e a cidade de Dresden? Tu conhecias algumas dessas histórias? Sei que já viajastes muito.
AC: As histórias são inventadas, com excepção da boneca. Mas, na altura quis escrever um romance sobre uma criança judia que servia de consciência a um alemão muito pouco dotado intelectualmente e quando refleti sobre isso pensei que o cenário ideal seria colocar esta história na Alemanha nazi. A escolha de Dresden acontece porque se trata de um sítio muito especial, ao contrário das restantes cidades, sofreu muito na mão dos aliados. Não é o que se espera. Normalmente sabemos das cidades que sofreram sob o jugo dos nazis, mas Dresden sofreu também muito com os bombardeamentos constantes das forças aliadas. E queria com isso reflectir um pouco sobre esta noção do bem e do mal, porque são os bons que destroem uma cidade com uma arquitectura muito especial.
Há uma personagem que tem sempre a boca aberta, porquê?
AC: Como referi a pouco ele não é muito dotado, está sempre espantado com as coisas que vê. Tem uma noção de vida muito diferente, ele é um pouco infantil também, ele vê o mundo um pouco como as crianças.
Isso é uma metáfora porque simboliza de certa forma uma doença degenerativa, já que o livro é dedicado a tua mãe que sofre de Parkinson plus.
AC: Sim e também o que se passa com a boneca de Kokoschka é a tentativa desse pintor de dar vida a um objecto, a algo inanimado. O que se passa com a minha mãe é algo mais ou menos parecido, ela tem uma doença que é muito grave, não há cura, nem tratamento, é semelhante à doença de Parkinson em que está fechada num corpo, sem poder comunicar. É uma espécie de uma alma fechada dentro de um corpo que não funciona bem. Deixa de andar e os órgãos deixam de trabalhar, mas a parte intelectual mantém-se intacta. É uma doença demasiado cruel.
Quando pensastes nesta história, começou com as ilustrações, já que tens essa faceta muito vincada na tua carreira, ou escrevestes primeiro o livro e só depois criastes as imagens?
AC: As ilustrações são um complemento. O livro vive perfeitamente sem elas. Mas, mesmo quando faço livros onde a ilustração é mais importante, eu penso primeiro no texto e só depois começo a desenhar. Começo por uma coisa mais racional. Não me acontece pegar numa tela branca, ou num papel, desenhar e depois saí alguma coisa. Primeiro tenho que pensar muito naquilo que vou fazer e antes mesmo de escrever. Há um processo, em que tento digerir a coisa dentro e só depois cá fora. É como semear, não vemos a planta inicialmente a germinar, mas ela está lá a fazer algo. É um trabalho invisível. Tenho sempre uma estrutura mental antes de passar à escrita.
Quanto tempo demorou neste livro, a passagem da tua cabeça para a escrita propriamente dita?
AC: É um pouco difícil responder isso. Depende do livro. Entre um mês e meio, dois meses, antes de fazer um esboço. Depois há muitas modificações, releituras e revisões que podem demorar muito ou pouco. Não é um trabalho tão tangível quanto estar a escrever. Passo muito tempo a reler, para mudar uma coisa, tenho de voltar a ler tudo, para verificar se não modifico o conteúdo geral. Eu escrevo tudo de uma vez e só depois começo nas revisões. Não sei trabalhar de outra forma. Quando começámos a rever logo do início, não saímos dali e nunca chegámos a lado nenhum. Se for no final, já esta tudo construído.