
Lívia Natália é professora universitária, investigadora e poetisa da chamada literatura negra feminina. O seu livro “água negra” aborda a temática familiar sob o ponto de vista das religiões de matriz africano.
No teu livro de poesia, “água negra”, há uma homenagem a duas mães, a tua e a natureza.
Lívia Natália: A mãe natureza das religiões de matriz africana, o candomblé que não é uma religião muito forte, nem maioritária, mas é tradicional, veio para o Brasil com os negros que foram escravizados e a temática familiar do materno e paterno estão muito presentes. Penso na poesia como sendo uma forma de você compreender e representar esse universo conforme ele me toca. A presença desses dois elementos e em “correntezas” que é o meu próximo livro onde vejo isso de uma forma mais forte, porque em “água negra” a mãe que aparece de uma forma mais sistemática é mais do que a representação da minha mãe e da própria maternidade que eu já vivi, aparece uma mãe energética que é metaforizada e alegorizada por um orixá do candomblé de oxum que é mãe de todas as águas doces, dona da fertilidade e da barriga de todas as mulheres, segundo essa crença tudo isso toma conta das crianças até os cinco anos de idade.
Definirias a tua poesia como feminina? Ou achas que o conceito não existe?
LN: A minha poesia é notadamente feminina, porque se propõe pensar. Costumo até brincar que para algumas coisas temos de ter útero, porque é o feminino que leva à familia e de alguma maneira o mundo. A Conceição Evaristo que é uma poetisa de que gosto muito ela diz que a mulher é a força matriz e motriz do universo, então eu vejo a minha poesia muito filiada a isso. Ao pensar esse feminino, esse lugar da mulher e repensar as nossas relações com o masculino, com o corpo, com os filhos e com a maternidade. Então isso é algo que me interessa, porque são coisas em que penso o tempo inteiro.
A cor também entra no teu pensamento?
LN: Sim, a demanda que a gente tem no Brasil e classifico como uma demanda etnico-racial, porque é político pensar nesta questão a partir da raça. Para mim é importante já que me enquandro como uma poeta de literatura negra justamente porque ao articular, por exemplo, a religião como o candomblé de maioria negra no Brasil e a pensar em todas as travessias que todas as mulheres negras fazem no decorrer da sua vida para serem pensadas e reconhecidas para além da sua beleza, do seu corpo e dos estereótipos que construíram para a gente. A minha poesia esta o tempo inteiro pensada numa coisa que a poeta chamada Miriam Alves fala que é poesia afro-feminina, é uma outra forma de dizer o que faço. Eu faço literatura negra temática com o cunho pensado a partir do olhar do feminino sobre o mundo.
Esse teu olhar que tem de ser feminino, porque mesmo dentro da comunidade negra há um certo preconceito masculino sobre o papel da mulher, que a mostra como alguém submisso.
LN: Seguindo os dados do instituto brasileiro de geográfia, os dois ou três últimos anos mostram que a mulher negra ganha quatro vezes menos que o homem branco, são dados estatísticos que nos aterra no país e no que diz respeito as relações humanas existem hoje muitas discussões no Brasil sobre a afectividade da mulher negra. Como essa mulher pensa essa relação com o masculino, seja com uma outra mulher de cariz homossexual e como o homem principalmente o branco e o negro nos pensam. Muitas vezes nós achámos que encontrando um parceiro que seja negro vencemos uma ideia de submissão, porque ele é negro e sabe o que é ser negro, mas mesmo assim os homens não sabem o que é ser mulher. E por conta de não saber o que é ser mulher eles acabam incorrendo os mesmos lugares comuns e estereótipos que nós passámos séculos a fio. Eu destaco um poeta chamado Akins Kinte, é de São Paulo, que tem uma poesia muito bonita sobre o pensar esse feminino para além dessa imagem, ele pensa nessa mulher negra que é gorda, que tem celulite, que tem estrias que tem barriga e para ele esse é o corpo de desejo, mas é também desajante. É pelo menos isso em que penso.
E como é que os leitores vêem as poetisas brasileiras? É também de forma preconceituosa? Ainda há muito caminho por percorrer?
LN: A literatura de uma maneira geral em qualquer lugar eu diria do mundo, mas só posso falar do meu e se a gente pensa em termos de Brasil, a poesia é algo muito pouco lida e pensada. Quando se pensa em poesia negra menos ainda e se é escrita no feminino é quase nada, os leitores quando tem acesso ao que a gente escreve tem uma identificação muito grande quer sejam brasileiras brancas ou negras e isso é importante demarcar e existe também um reconhecimento por parte dos homens em relação ao que temos para dizer, é importante aquilo que a gente disse. Então, existe ainda muito caminho por trilhar, mas ao mesmo tempo a gente sabe que temos espaço e força para ganhar e o importante é isso que tem de ser feito, escrever é uma forma de militância para uma mulher negra.
O Brasil é um país de prosistas?
LN: Sim, porque existe uma cultura muito tradicional no Brasil de que a prosa é mais fácil que a poesia, porque este genéro literário é exigente, porque a poesia não permite que esteja lendo e vendo um programa de tv, ou fazendo outra coisa que não seja um poema. Ao mesmo tempo a poesia te impacta de uma única vez, a prosa ela se dissemina no espaço e no tempo e você vai caminhando, vai compreendendo e vai a par e passo com o texto. A poesia não, ela é um momento só , então existe uma resistência no Brasil que poesia não vende, tem um poeta chamado Paulo Leminski, já falecido, que ele diz que é mais certo você ganhar dinheiro com um camião cheio de bananas do que com a poesia, mas só um poema lhe dá prazer e dá um rumo.