
A poesia de Regina Correia escorre pela tinta como um rio que é mercúrio , já fui água. Um percurso andarilho, que criou um universo interior melancólico e ao mesmo tempo eufórico que marcam as suas palavras.
A saudade é um dos temas recorrentes na sua poesia. Existe porventura alguma diferença entre a saudade exterior ao nosso mundo, que se sente quando se esta fora de Portugal e a saudade interior, de quem habita o mesmo território, mas sente falta de algo, ou alguém?
Regina Correia: A saudade habita-me desde que tenho consciência de mim, em todas as suas formas, seja uma insuportável dor física seja como estado de alma latente, melancolia, tristeza, raiva, desejo, impotência, até euforia, terão que ver com minhas andanças, sozinha, desde tenra idade, pelos mundos. Tornou-se um vinco em meu ser, indissociável do meu corpo e da minha alma, longe ou perto de meus espaços ou de minhas gentes. Viajei de Angola para Portugal com seis anos de idade, sozinha, entregue a um comandante de navio amigo de meu pai, que eu não conhecia… aqui começou a via-sacra da saudade…
A sua escrita aparece apenas em períodos de melancolia, tristeza ou dor? Se não porquê?
RC: Pode parecer um lugar-comum mas a escrita nasce de um impulso, geralmente incontrolável, de entrar num corpo de mensagem, que um gesto, uma palavra, uma imagem, o riso, o pranto, as sensações, os sentimentos antagónicos provocam. Talvez surja mais em momentos de desconforto, dada a minha natureza melancólica para um certo fado da desventura. Mas não necessariamente.
Notou uma necessidade maior em escrever poesia quando esteve fora de Portugal?
RC: “A poesia é algo tão íntimo que não pode ser definida”, citando Jorge Luis Borges. A poesia brota das profundezas, apoderando-se do momento. É como o oceano em que se mergulha, para que o corpo venha a emergir leve e solto, ainda que as grades da existência permaneçam no horizonte. O poema liberta. É a vida com sentido. Escrevo poesia desde sempre. Impublicável, por pudor. E tendo eu vivido tantos anos fora de Portugal, os livros editados incluem poemas desses tempos de maior solidão.
É necessário ter vivido para escrever poesia?
RC: É necessário viver, no sentido existencial, com os sentidos todos alerta, para se escrever. Para se escrever poesia, sobretudo.
O que diferencia ou aproxima em termos poéticos estes dois livros, “Noite Andarilha” e “Sou mercúrio, Já Fui Água”.
RC: Os dois livros encerram em si uma espécie de ciclo vital dos elementos. “Noite Andarilha” é um livro de água e de fogo. Acometido pelo transe da noite iniciática de eterna busca do amor, da paixão, do corpo em êxtase. É um rio de luz e de lava. De leveza. De deambulações pelos atalhos ridentes na celebração da vida. “Sou Mercúrio, Já Fui Água”, a outra margem, a terra e o ar definhando à esquina das tardes morrendo. O peso do dia que cega, pelo mercúrio contaminando águas antigas. O lado poente.
Existem poemas que a definem como poetisa ou não?
RC: Julgo que certos poemas publicados, e outros inéditos, poderão definir-
-me como poetisa, no sentido em que denotam entrega ao verbo, à transfiguração poética, a alguma qualidade literária. Mas cabe a quem lê sentir o autor através do texto e assim o “classificar”…
Quando escreve poemas pensa na cadência das palavras ao serem proferidas.
RC: Sou muito lenta a escrever, no sentido do texto final. Esse é o trabalho de depuração do excesso, dos rendilhados que podem mascarar o essencial. Naturalmente o poema alimenta-se de musicalidade, de ritmo, das sílabas nuas vestindo-se festivas. Não acontece, porque penso na cadência das palavras, ao escrever, há um chamamento espiritual que aproxima a mão do rio que deve correr cantando, bailando pela página.
Há momentos em que sente que as mulheres poetisas são menos reconhecidas no meio literário de que os homens?
RC: Ah, claro, as mulheres, apesar de lutas e muita afirmação, continuam num plano inferior, do ponto de vista da sua aceitação social, em qualquer contexto. Veja-se o que se passa ainda no meio laboral em países ditos do 1º mundo, no que se relaciona com diferenças salariais, apoio à maternidade, igualdade de condições de trabalho… Mas, embora doa afirmá-lo, penso também que, muitas vezes, certo tipo de discriminação terá que ver com a atitude da própria mulher. Infelizmente, num tempo de emancipações, há aspectos em que a mulher regrediu, tornando-se quase exclusivamente um produto de consumo, de meio fácil para revoluções de marketing…