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Longe do meu coração

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É um livro catártico que não tem a pretensão de ser uma obra-prima da literatura, mas que encontrou o seu nicho no coração de milhares de portugueses que revêem-se nesta história sobre coragem, privação e amor, cujo epicentro é o movimento migratório para França. Um relato quase jornalístico escrito por Júlio Magalhães.

Tivestes sempre em mente a ideia de descrever uma história de amor, entre dois personagens completamente dispares em termos de educação, condição social e cultural?

Júlio Magalhães: Foi claramente por isso. São histórias que vi, que se passaram, que se concretizaram, foi muito o cenário da década de sessenta. Houve uma miscelânea muito grande entre portugueses e francesas que provocaram, na altura, uma grande agitação nessa sociedade. Os portugueses contribuíram muito para o desafio que se estava a lançar na época. Fui apresentar o livro á França, até porque eles são a maior comunidade estrangeira que reside naquele país. Em Paris vivem cerca de um milhão de portugueses, que ficaram lá para sempre. Uns casaram com portuguesas e outros com francesas. Houve uma grande interligação entre os dois povos. Eu queria abordar isso, patamares sociais diferentes, até porque os portugueses não tinham posses, eram trabalhadores da construção civil que viviam em bairros miseráveis e houve uma ligação entre eles e as francesas de escalões sociais mais elevados, apaixonaram-se e fizeram com que o amor prevalece-se em relação ao que eram essas diferenças.

Em França ao apresentar o livro, eles aproximavam-se e diziam-te: esta é a minha história?

JM: Quase todos. Era verdadeiramente a história deles, contada por diversas pessoas que viveram isso mesmo e que se multiplicam pelos milhares que emigraram para França, ou no caso dos retornados que vieram de África, ou mesmo no caso dos militares que foram combater para as ex-colónias. A história dos emigrantes na década de 60 é essa. Viveram todas essas mesmas experiências, o sofrimento e as humilhações. Alguns perderam a vida pelo caminho, outros amigos. É uma geração de portugueses que ainda hoje esta viva. É um livro baseado em factos verídicos e que vendeu muito, porque as pessoas sentiram que ali está expressa a sua vida. Não o escrevi com a ideia de ser uma grande obra literária, é uma grande reportagem em livro em que cada leitor sente que viveu aquele momento, sente que é o livro delas.

Já referistes isso mais do que uma vez, que não és um escritor, mas sim um jornalista que escreve, porque dizes isso?

JM: Primeiro porque é verdade. E segundo para me defender de um lobby muito poderoso que é o da literatura, que não dá acesso às pessoas que escrevem.

Mas, essa distinção não se faz em alguns países.

JM: Sim, mas em Portugal ainda persiste um certo estigma em relação a isso. Há países onde isso acontece, no Brasil por exemplo, os jornalistas escrevem livros. É a nossa obrigação. Para exercer esta profissão é preciso saber escrever em português.

Há também uma grande tradição americana nessa área.

JM: Na área da literatura ainda há um grande estigma nesta matéria, porque confundem a minha escrita e de outros com a chamada escrita light. Não acham que escrevemos literatura e acho bem, porque eles são escritores e não devemos confundir as coisas. Eu também acho que faço melhor jornalismo. Não custa nada conviver e perceber que somos importantes, uns para os outros. Os meus livros vendem muito.

Não está relacionado com o tipo de linguagem? Tu usas um tom coloquial que se aproxima muito do leitor.

JM: É uma linguagem muito simples, porque estou a falar delas, como elas. Os escritores já não. Tem uma literatura mais densa, uma forma de escrever mais rebuscada, trabalham para isso e só vivem disso. Há espaço numa biblioteca, ou numa livraria para todo o tipo de livros, não há nada mais democrático do que a escrita. O que é importante é que cheguem a uma estante e que encontrem todo o tipo de literatura, desde os que escrevem bem, aos que o fazem mal, ou os que o fazem de forma simples. A partir do momento em que as pessoas escrevem um livro, essas palavras são dos leitores e eles têm de ter essa liberdade de escolha. Não são as pessoas que escrevem que definem o que é bom, ou o que é mau. São os leitores. Acho que é isso que ainda não se percebeu aqui, por isso que digo sempre que sou um jornalista que escreve livros, para não aborrecer quem é escritor.

Quando escreves estes livros há uma componente comum, abordas as grandes movimentações demográficas, quer neste como em outros. São sempre os grandes êxodos de portugueses que aportas nos teus livros, porquê?

JM: Há dois motivos. Um porque é uma década muito importante na história contemporânea portuguesa, os anos sessenta foram alvo de grandes movimentações demográficas de portugueses. O outro, porque eu sempre disse que só escreveria sobre coisas que conhecesse e tivesse vivido. O meu primeiro livro é sobre a minha família e os meus amigos no retorno de África. Como o livro se tornou um grande sucesso, a editora achou por bem continuarmos na mesma linha editorial da primeira publicação, concentrar – me ainda nos anos 60. Não valia a pena aventurar-me em outros períodos da história de Portugal, num outro tipo de escrita, quando estou a dar os primeiros passos no mundo da literatura. É uma década que fornecia muitas outras ideias para se escrever livros que não tinham sido falados.

Também é porque se escreve pouco sobre este período?

JM: Muito pouco. Sobre os retornados de África havia muito pouca literatura, não sobre os militares, mas as pessoas. Os muitos que viviam no campo e nunca tinham visto o mar, ou as muitas mães e mulheres que tinham ficado cá. Sobre os emigrantes para França.

Do movimento propriamente dito, não me recordo de nenhum livro que aborda-se essa questão especificamente.

JM: Foi por isso que os livros foram um sucesso. Sabes porquê? Porque era um tabu falar sobre o assunto. Os retornados não queriam abordar esse momento da grande humilhação, mesmo os emigrantes não queriam relembrar as privações que sofreram para chegar até ali, onde foram sujeitos a ínfima condição humana para sobreviver. Quiserem esquecer esse período das suas vidas que nunca contaram aos filhos e aos netos. Quarenta anos depois falou-se sobre isso e eu entendi que era uma boa década para continuar a escrever.

É curioso que digas isso, porque a pouco referistes que quando foste apresentar este livro em França as pessoas diziam-te: esta é a minha história. Quer dizer que 40 anos depois conseguem conviver pacificamente com esse passado?

JM: Muitas conseguiram. Algumas pessoas que julgaram que nunca mais voltavam para África, depois de o lerem acharam que o livro as tinha exorcizado de alguma maneira. Se calhar até queriam. Muitos emigrantes ofereceram este livro aos filhos e aos netos para que eles conhecessem a sua verdadeira história da vida. Eu acho que contribui para muitos ultrapassassem uma década muito difícil, da qual nunca mais falaram e não queriam recordar. O livro apesar de tudo aborda todos esses momentos, que termina com uma história de sucesso. O que eles encontram nos meus livros é precisamente isso, o orgulho que tiveram depois de tanta privação, o êxito que obtiveram na vida. E acho que contribui muito nesse aspecto para que as pessoas ultrapassassem esse tabu, esse problema das suas vidas, que era não falarem do passado.

Longe do meu coração, porquê?

JM: Por essa diferença que havia entre um português e uma francesa de outro patamar social, numa altura em que era muito difícil, houve muitas histórias destas que se perderam, em que as pessoas se afastaram. Não era possível, nessa época, pessoas de diferentes escalões sociais viverem juntas, ou casarem. Aquela é uma excepção à regra, os portugueses de uma condição baixa que não tinham acesso aos franceses das classes médias e altas.

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