Um olhar sobre o mundo Português

 

                                                                           

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O açoriano inquieto

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É sem sombra de dúvida o livro mais conhecido e reconhecido pelo público do escritor joão de Melo. Trata-se de uma saga familiar que atravessa vários países e que evoca as ilhas interiores.

É de certa forma autobiográfico?
João de Melo: De certa forma, não totalmente, se calhar nem pela metade. Porquê? Precisámos talvez de revêr o conceito de ficção. Há pessoas que dizem que a ficção é a pura mentira que se faz passar por ser verdadeira, dámos-lhe o aval da escrita, publicámos, fazemos livros, etc. Existem outros ainda que dizem que não é bem assim. Dígamos que há um ponto pessoal de partida do autor, daquilo que é, do que viveu e dos sítios e das pessoas que conheceu, que ajudam a ver melhor à realidade de que ele quer falar, embora possa transportar de um lugar para outro o próprio testemunho do que relata. Mas, no caso de "gente feliz com lágrimas" a ideia foi essencialmente o seguinte, adequar à narrativa ao tempo português daquela altura, no caso dos Açores, que se caracterizava por uma extrema pobreza e famílias muitos numerosas, com muitos filhos, como uma espécie de clã familiar onde o pai era uma espécie de voz de autoridade. De uma enorme necessidade de fuga da ilha para fora e é a partir daí que o livro claramente descola da chamada infância açoriana para povoar os destinos quer dos açorianos, madeirenses, ou continentais, porque abre os caminhos da emigração. E a partir do momento em que o livro vi identificando esses itinerários, nós já estámos não a falar propriamente de uma família, mas sim de um país, que vai até África, que tem a experiência da guerra, que vai para o Canadá e para o continente. Depois a narrativa evoluí em espiral para o tempo português e faz uma espécie de baixo relevo da própria quotidianidade portuguesa ao longo destes 40 anos.

Mas, quem leu o livro fala que aborda a essência do ser ilhéu, de como era sofrida a vida nas ilhas e não tanto um retrato do país.
JM: Naturalmente que esta lá, mas eu aceito todo o tipo de leituras desportivamente e com cara alegre de qualquer livro meu, mas repare que a insularidade não existe só nas ilhas, se for a uma aldeia numa região como a Serra da Estrela, ou Trás-os-Montes vai encontrar ilhas, pessoas insularizadas, não tem o mar em volta, mas tem as montanhas, as grandes penedias de que falava Torga e o mesmo instinto de saída da "terra maldita" para ir à procura da libertação económica e isso faz parte das crónicas portuguesas da contemporaneidade. No fundo eu quis que este livro fosse profundamente e autenticamente açoriano, não para ficar lá, mas também para propôr a ilha como analogia para outros lugares, outros sítios, em outros países. E houve coisas muito belas que se disseram sobre este livro, recordo imensas delas, este é um livro que tem 25 anos de existência, mas uma dessas belas ideias que se disseram sobre "gente feliz com lágrimas" foi que se tratava de um livro sobre ilhas interiores, quando foi traduzido para castelhano foi dito que poderia ser um livro espanhol e coisas do genéro. Estas coisas, claro, que caem muito bem no coração do autor, que é sinal de que no fundo escrevemos por uma causa, ou para identificar à condição humana ligada ao lugar e ao tempo, que é como sabe, igual aqui, na China, ou no Japão e temos todos os mesmos anseios.

Abordando os 25 anos de "gente feliz com lágrimas" acha que olhando para atrás poderia ter feito outro livro ou não? Pelo menos diferente?
JM: O "gente feliz com lágrimas" foi um livro que me fugiu das mãos, porque era para ser como na primeira parte, três irmãos a lutarem pela sua vida, a sua aventura e já na segunda parte seriam eles a narrarem. Só que há uma altura em que o livro tem 800 páginas e eu disse: isto não pode ser. Ou é uma trilogia, ou é um calhamaço que ninguém vai ler, então voltei para atrás para reescreve-lo em espiral e a personalizar na figura do Nuno e no seu casamento para organizar a história. Mas, repare que poderia ter feito uma triologia porque daria, mas as coisas são como são, acontece por acaso que dei por mim com aquele excesso e acontece por acaso que foi assim que o público gostou. Não tenho garantia nenhuma que se tivesse sido uma triologia teria sido um sucesso, até porque se fossemos para o primeiro, segundo e terceiro volume, ou algo parecido, há sempre um fim abrupto que deixa antever que o livro não esta completo e podia não ter tido a fortuna crítica que teve até agora. Dígamos que é um caso muito assinalável.

Falando da linguagem deste livro, há um tom muito cruel, muito directo que é pouco habitual na literatura portuguesa que gosta muito de palavras pomposas, de metafóras e analogias.
JM: O livro é muito oral, porque vive de alguém que ouve as histórias, é um senhor, pergunta-se muitas vezes quem é, mas sabemos que esta lá e tinha que ter um estilo mais ou menos oral. Ninguém fala da maneira como escreve, a oralidade é o fio condutor da narrativa, mas depois existem outros livros e aí já o autor emerge como prosador, mais ou menos poético. Depois há o modo característico de falar dos emigrantes quando já estão contaminados por uma língua estrangeira e adoptam termos e criam palavras que não existiam antes, por exemplo, nos Açores da minha infância não havia figrorificos e é evidente que quando toda aquela gente saí da Achadinha, do Concelho do Nordeste e vai para o Canadá e aparece um frigorifico na ilha, chamam-lhe frizer e chamam television a televisão, eu quis que isso aparecesse no livro e também as bengalas em inglês, como, "do you know?" que faz parte da linguagem do quotidiano e que ouvi imensas vezes nas viagens que fiz junto dos emigrantes da América do Norte. No livro este discurso são marcas da oralidade e que de alguma forma também arrastam o leitor consigo.

 

 

Qual das personagens lhe custou mais?
JM: A parte que mais me custou escrever chama-se a outra versão da Marta, que é a mulher do Nuno a descrever o seu casamento e divórcio, custou-me porquê? Porque é difícil a um homem a linguagem no femenino, porque não é apenas isso, é o temperamento, é tudo. E isso é duro e tive muitas dúvidas sobre o longo monológo da Marta quando repassa toda a crónica do seu casamento falhado com o Nuno Miguel. Posteriormente quando se fizeram abordagens múltiplas do livro houve quem dissesse que era a melhor parte e outros que era a pior parte do livro. Eu julgo que é no meio termo que esta a virtude, porque se pedirmos a uma escritora que faça um discurso no masculino, ela vai ter o mesmo problema, embora a literatura seja essencialmente masculina.

Aliás, há uma opinião da Inês Pedrosa que afirma que as grandes personagens femeninas contrariamente ao que se diz foram escritas por homens e vice-versa.
JM: Mas, aí eu acho que ela se refere mais ao psicologismo e creio que tanto na Ana Karenina, como na Madame Bouvarie o escritor consegue lá chegar, porque há uma parte na mulher e eu também fiz isso com a Marta e noutras em outros livros, o homem olha para a mulher e verifica que o humanismo já esta realizado, é onde se realizou mais depressa, deixamó-nos fascinar e inventámos uma linguagem para isso, umas vezes acerta, outras não. O homem é menos humanista, porque infelizmente é o grande causador das grandes tragédias, embora o mundo seja algo maravilhoso, contudo, não é total, porque tem muita lástima e miséria e eu penso que é o poder do homem que impede que o mundo seja outra coisa, porque se dependesse das mulheres seria um lugar muito diferente.

Tem alguma personagem preferida ou são todas?
JM: Não tenho. Eu agarro-me mais aos pequenos trechos que me saíram melhor, os paragráfos mais elaborados que me sairam melhor, dentro de uma linguagem que tento utilizar dentro do livro e a descrição de alguns ambientes. Eu acho que quanto as personagens eu fui atrás delas e depois elas levaram-me atrás, fui andando e tentanto preservar a voz de cada uma para que não houvesse misturas. Por exemplo, a Amélia que também fala é outra personagem que tem um discurso feminino com o qual tive que ter muito cuidado, não podia ser igual a dos irmãos. Quanto à eles, o discurso de um é mais fundo do que do outro e também pela razão de um ter estudado e o outro não. No fundo é um jogo de pedras, um puzzle que vamos montando, do volta atrás, corrige e emenda. Um livro é um trabalho de auto-exigência que quando se acaba é um alívio, é um acto quase heroíco.

O título não de certa forma uma ironia? Porque é um livro sobre a falta de amor e dessa busca que não obtiveram da figura paterna e ao longo da sua vida. Eles não são felizes por causa dessa busca incessante...
JM: Eu quis que o título fosse contraditório. Eu penso que é bom, porque as pessoas adoraram e já se usou imenso. Fiz experiências com as pessoas, dizia-lhes: sabes como se vai chamar o livro de fulano tal, "gente feliz com lágrimas" e diziam-me que era bonito e mal sabiam que era um livro meu. Fundamentalmente a moral da história é que se trata de pessoas que adquirem a sua liberdade económica por via da emigração, ou do saber, do estudo e do progresso em Lisboa, como é o caso do Nuno, mas é gente que atingiu uma tranquilidade, apesar das muitas lágrimas que tiveram ao longo da vida e que não estão de todo superadas, há uma espécie de luto permanente misturado com a felicidade, tal como uma doença que ainda não teve cura total.

Nas viagens que fez por esses países onde a emigração portuguesa esta instalada, eles não vieram ter consigo e dizem-lhe que se revêem no livro?
JM: Sim e aconteceram coisas comoventes, extraordinárias de pessoas com o livro na mão e com as lágrimas nos olhos que me dizem que foi escrito para eles. Hermanamó-nos logo numa dimensão de humanidade muito grande. Eu recordo, pareceu-me um milagre quase, estar tão longe na Califórnia e de repente sabe-se que estou e faz-se uma fila de gente com o livro debaixo do braço para eu assinar e cada um tem necessidade de falar sobre isso e há um espaço de identificaçáo que o autor vai descobrindo. O difícil é codificar isto antes do objecto existir, não é? Saber que esta é a direcção certa e acertar no alvo, o escritor tem de arriscar e quando tem alguma expectativa em relação a um livro seu às vezes acontece que não se cumpre. Aconteceu-me pensar este livro é bom, parece ser o melhor e quero que tenha êxito e não tem. Outros penso é mais um e acontece o oposto.

Aconteceu isso com este?
JM: Sim, porque era um livro grande que me fatigou imenso. Escrevi freneticamente, mas fiquei muito, muito inquieto e é efectivamente de todos os meus livros é aquele que encontrou as graças do público, desse mar de gente que se estivesse reunido dava para povoar uma cidade.

1 comentário

  • Ligação de comentário firma budowlana domingo, 01 junho 2014 05:51 postado por firma budowlana

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