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O pequeno livro do grande terramoto

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O historiador Rui Tavares escreveu um pequeno ensaio sobre a maior catástrofe natural de Lisboa que gerou uma grande conversa sobre o seu conteúdo.

A ideia do pequeno livro do grande terramoto surgiu devido ao 11 de Setembro, ou por causa do tsunami de 2004?
Rui Tavares: Bem, enquanto historiador a minha época de especialização já é o Pombalismo, em particular após o terramoto. A ideia desse livro surgiu uns anos antes, quando me apercebi que se iam comemorar os 250 anos do terramoto, pensei e fiz planos para um documentário sobre esse acontecimento histórico, fiz um guião que andou de mão em mão, falei com produtoras, procurámos financiamento, andámos em volta dessas grandes estruturas que são o cinema e a televisão, porque este tipo de projectos necessitam de grandes equipas e a certa altura percebi que não íamos chegar a lado nenhum. Desisti dessa ideia e segui a via mais simples, regressar a casa e escrever um livro. Era algo que podia fazer sozinho, depois tive a grande sorte de que a editora tinta-da-china ter aparecido nessa altura, foi criada por colegas minhas da faculdade, todas mulheres e estavam à procura do livro que foi precisamente este. Foi escrito em dois meses, ininterruptos, tinha umas ideias para um ensaio e foi feliz nesse sentido, apesar de ser sobre um assunto triste, foi um livro escrito de forma muito fluida, de um folego só, em 62 dias se não me engano.


Mas, houve anteriormente uma grande pesquisa, porque descreve com pormenor a cidade de Lisboa antes do terramoto de 1755.
RT: A pesquisa já estava feita em grande medida, não consigo bem quantificar, porque foi realizada ao longo do tempo para a ideia do documentário. Portanto, havia uma série de material de apoio para o projecto. A restante pesquisa foi sobre o pombalismo. Então esses dois meses foram só de escrita, com poucas idas ao arquivo, embora houvesse um capítulo directamente escrito na torre do Tombo, com os documentos ao lado, sem fazer aquilo que os historiadores muitas vezes fazem, que é recolher primeiro os documentos e depois trata-los. Escrevi em cima do documento e também foi uma ocasião para fazer uma coisa que é provavelmente pouco perceptível para o leitor, mas que gosto bastante de fazer, que é cada um dos capítulos do livro é um género historiográfico diferente.


Então, comecemos pelo primeiro capítulo em que aborda os determinista e os indeterministas, como historiador sente-se identificado com algumas destas correntes?
RT: A resposta sobre se a história é determinística, ou seja, se podemos desde que tenhamos o conhecimento das leis da história prever acontecimentos e perceber o que vem detrás, ou se a atitude que devemos ter perante a história é pirronista, o termo provém do filósofo da antiguidade, Pirro da Eleia, que quando soube que Sócrates disse: só sei que nada sei, ele respondeu: pois, nem isso sei. Portanto, podemos ter uma atitude pirronista perante a história, não sabemos se há progresso ou não, ou se há sentido para a história. Como historiador prefiro deixar essa resposta em suspenso. Como individuo, com uma espécie de visão filosófica da história, na verdade a minha resposta seria que sou filosoficamente pirronista, acho que não há sentido para a história, se não a podemos apreender, sou um céptico radical. Civicamente sou um voluntarista, se há ou não progresso humano, não é uma questão para ser respondida pela teoria, deve ser respondida pela nossa práctica quotidiana. Não sabemos se existe progresso humano ou não, devemos fazer para que haja. São duas posições diferentes, como dizia o escritor, Scott Fitzgerald: eu até posso pensar que não há esperança, mas devo estar decidido a agir para que as coisas mudem.

Falando dos capítulos propriamente ditos, porque a divisão foi feita desta forma?
RT: Eu enquanto estudante de história sempre me interessei pelas teorias de historiografia e de uma espécie de cruzamento entre o experimentalismo literário e essa mesma abordagem. Então, como fazer qualquer coisa que obedece aos parâmetros de rigor factual e documental, mas que traz para a nossa experiência enquanto leitores, a multiplicidade de perspectivas que um escritor de ficção pode trazer, escalas muito micro, muito macro, histórias contadas por vários narradores ao mesmo tempo, ou contadas a partir de diversas perspectivas, etc. Sempre gostei muito disso, e foi o que decidi fazer neste livro e é aplicado em cada capitulo de forma diferente. Por exemplo, há um sobre a vida quotidiana de Lisboa no ano do terramoto. Até o dia 1 de Novembro de 1755 temos 10 meses em que a vida acontece de uma forma normal, para nós hoje em dia, a imagem desse ano é terrível, de um corte abrupto na história, mas desde 1 de Janeiro quando a corte vai até a Igreja de São Roque ouvir um Te Deum até o dia 31 de Outubro, mesmo até as 9 horas da manhã do 1 de novembro de 1755 é um dia normal, a gazeta de Lisboa fala até de um ano abençoado, uma cidade favorecida por Deus, onde os milagres se viam até em coisas como as velas não se gastarem tão depressa como previsto. Então esse capítulo que conta tudo, a par e passo, é micro-história, que é um género historiográfico que nasceu em Itália, nos anos 70 e 80, com um historiador Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, este último filho da romancista Natália Ginzburg, é alguém que trouxe a literatura para a história. O outro capítulo é escrito segundo um outro género que é o contra factual, em que se explora como teria sido Lisboa se não tivesse havido o terramoto. Aqui, propositadamente dizemos ao leitor: nós vamos violar o jogo da história, porque vamos falar de coisas que não aconteceram e que não acontecerão, porque a cidade teve um terramoto e foi posteriormente reconstruida e daí surgiu uma outra urbe, mas vamos faze-lo, para dar a perceber quão foi importante esse acontecimento trágico. Depois há outros capítulos escritos em outros géneros, o neo historicismo, um ensaio que tem a ver mais com a teoria da recepção, tem a ver com a memória do terramoto hoje em dia. Cada capítulo tem um estilo e uma voz diferente.

Um dos capítulos que achei deveras curioso foi o ponto de vista dos estrangeiros sobre a sua experiência pessoal no antes e após o terramoto e não há contudo, a visão dos lisboetas desse mesmo acontecimento?
RT: Curiosamente os lisboetas não escreveram muito sobre o terramoto do ponto de vista subjectivo e pessoal. Esse capítulo é precisamente a perspectiva pessoal, o olhar de alguém que é apanhado por uma catástrofe daquelas. Os portugueses não escreveram sobre o terramoto, é notável como na "gazeta de Lisboa" que era o jornal da altura, não havia propriamente jornalismo naquela época, é um pré-jornalismo, não se escreveu nada sobre este cataclismo. Não fez do terramoto notícia, porquê? Porque os lisboetas viveram esse desastre e não precisavam de dar a notícia. Os portugueses que escreveram sobre o terramoto fizeram-no de uma forma quase neutral, muito factual. Ora, estes estrangeiros como precisavam de comunicar com as suas famílias, no caso de Thomas Chase, explicar a sua mãe o que aconteceu. Ele era um jovem de 26 anos e ainda por cima o terramoto acontece no dia do seu aniversário, ele escreve uma carta que tem a frescura desse olhar pessoal, esta a queixar-se das desgraças que lhe aconteceram, isto permite ter um olhar sobre a estranheza do acontecimento, mais a estranheza das comunidades que habitavam à Lisboa mercantil daquela altura. O olhar dos ingleses, alemães, holandeses e é também neste relato que apanhámos algumas referências aos escravos africanos, dos galegos que viviam e trabalhavam na distribuição da água. E nós sabíamos que a cidade estava cheia de brasileiros, que eram muitos, comprados pelo Marquês de Pombal para serem o seu pessoal político, como o seu secretário pessoal, que era também poeta, Basílio José da Câmara, mas havia muitos outros. Como não tinham as suas redes clientelares fixas em Lisboa eram pessoal politico que podiam dar confiança a alguém que os contratava pela primeira vez, porque sabiam que não eram clientes de uma família nobre. Apanhámos também, algumas referências as populações que viviam no outro lado do rio, de onde vem pescadores recolher os sinistrados do terramoto, se não fosse ele não encontraríamos essa toda essa vida.


Mas, se os portugueses pouco propagaram esse acontecimento, como é que chegou a esses relatos?
RT: O terramoto de Lisboa teve uma enorme importância no pensamento mundial do século XVIII. Foi um acontecimento onde houvesse um europeu, ou um ocidental mesmo de outros continentes, foi falado pelos maiores pensadores da época, Rousseau, Voltaire e por alguns que ainda eram jovens como o Kant e Goethe e portanto, permaneceu na memória enquanto mudança das mentalidades durante muito tempo inclusive no século XIX e início do XX. Grande parte dos literatos mundiais leram Kant e Voltaire e quando falámos do terramoto de Lisboa, há referências no Candide e isto é um vestígio de algo que era ainda mais forte nas épocas posteriores a este acontecimento. Periodicamente historiadores, filósofos de outras culturas regressaram ao terramoto. E algures no século XIX um periódico inglês recuperou estas histórias e encontrou a carta de Thomas Chase e o seu túmulo. Esta história aparece por causa de uma edição comemorativa do terramoto, promovida pela Fundação Gulbenkian, que recuperou estas cartas. Provavelmente das mais interessantes é a missiva deste jovem, é tão subjectiva, aquela choraminguice de um jovem inglês que passa o tempo a queixar-se e a falar mal de toda a gente, foi isso, que por outro lado, me encantou, por ela vir carregada da sua verdade, porque isso também é um acontecimento histórico. A história é vista por muitos olhares não só dos pensadores da sua época que a vão usar para fazer grande filosofia, mas também por um tipo como o Thomas Chase que usa esse acontecimento para fazer pequena história, do eu, eu, eu, eu coitadinho.


Disse anteriormente que dos lisboetas não há relatos, será porque encararam o terramoto como um castigo de Deus?
RT: Há alguma coisa, mas o que aconteceu depois, foi devido a acção política do Marquês de Pombal. Era essencial haver uma explicação oficial para o terramoto, que foi de que se tratou um acontecimento que tinha causas naturais, sendo que o regime não sabia quais eram, mas eram certamente naturais. Porque se fossem divinas isso implicaria dizer que os portugueses são maus católicos, que o rei português era mau que tinha maus súbditos e evidentemente o ministro do reino da altura, que ainda não era marquês, Sebastião de Carvalho e Melo não poderia permitir uma coisa dessas. Houve quem o dissesse, em particular, um padre jesuíta italiano, que há muitos anos vivia nos domínios portugueses e tinha regressado à Lisboa. Era muito próximo da corte, da princesa Dona Maria, que seria futura rainha, Dona Maria I, e dizia que os portugueses eram maus católicos, que as jovens lisboetas iam para as missas vestidas para serem vistas pelos moços, mandavam bilhetes durante as missas e por isso Deus tinha decidido castiga-los. Por sua vez, foi o poder politico que o castigou acabando por entrega-lo à inquisição portuguesa que durante 200 anos havia queimado judeus, feiticeiras e hereges e acabou por queimar um padre jesuíta muito devoto, foi a sua ultima vítima.


Diz que a história muda quando tem lugar estes grandes acontecimentos, estes desastres naturais, mas mudou de facto alguma coisa? Estamos preparados para uma tal catástrofe, quer seja Lisboa ou em outra zona do país? Aprendemos alguma coisa?
RT: Mudou muito. Não só para Portugal como para todo o mundo. O terramoto de Lisboa é considerado a primeira catástrofe moderna, precisamente por causa dessa decisão do marquês de Pombal, dessa versão oficial e natural para o sismo. A conclusão a retirar é que vamos fazer melhor, prédios mais baixos, ruas mais largas, vamos fazer uma cidade onde se houver um novo terramoto, seja mais fácil salvar as pessoas, vamos reconstrui-la com regras antissísmicas, que foram as primeiras do mundo e tudo isto é uma grande lição. Uma catástrofe natural não é só uma catástrofe natural, pode ser nas suas causas, mas as suas consequências são no número de vítimas que provoca e acrescenta-se a perfeição ou imperfeição do enquadramento humano, em termos arquitectónicos, de protecção civil etc. É por isso que se tivermos amanhã um sismo da mesma magnitude no Japão, ou no Afeganistão, no primeiro haverá no máximo 50 vítimas e no ultimo país haverá 50 mil mortos. Mas, o facto de termos aprendido dessas lições, que não possamos esquecer, em particular, numa cidade como Lisboa, com um ritmo sísmico muito espaçado, ao contrário dos Açores, e isto acaba por criar nas pessoas e nas entidades públicas um certo relaxamento que não é positivo. E estou convencido que, hoje em dia, o parque habitacional da cidade esta muito preparado para uma catástrofe deste género, mas um governo, uma câmara municipal atentas, deviam fazer uma fiscalização dos edifícios e dar formação aos cidadãos para saber se a casa esta a comprar ou alugar, e até seria algo apropriado para fazer em tempos de crise, porque criaria emprego, se tem resiliência sísmica ou não. Eu não acho que vá a haver um sismo em Lisboa amanhã, ou daqui a um ano com esta magnitude e pode até acontecer daqui a 200 anos, mas se houver com o tipo de construção que temos hoje vamos ver muito mortos e destruição evitáveis. É isso que é trágico.

 

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