Um olhar sobre o mundo Português

 

                                                                           

h facebook h twitter h pinterest

A dupla mestiça

Escrito por 

Couple Coffee são brasileiros, gostam de café e de acordar tarde. Os álbuns desta banda portuguesa são surpreendentes desconstruções musicais, irreverentes, canções mestiças, retalhos de várias pátrias cantadas pela voz quente de Luanda Cozetti e instrumentadas pelo talentoso Norton Daiello.

Editaram três álbuns musicais em que interpretavam composições de outros autores e só no quarto disco decidiram apresentar originais. Porquê esperaram este tempo todo para o fazer?
Luanda Cozetti: Olha, porque eu tenho uma veia de intérprete muito séria, eu gosto realmente de ser cantora, eu nunca tive essa coisa de apresentar as minhas próprias canções, eu aproprio-me dos temas dos outros e depois ficam minhas. Como tinhámos os três discos e havia um trabalho de fundo ao fazer versões dos originais, que gente transforma, dá uma nova onda, a maioria dos compositores, os mais conhecidos, o Godinho, o Palma e outros começaram-me a cutucar, o Norton como intrumentistas já tinha temas, mas eu não, então, a ideia original foi apresentar um disco de originais que eu cantava, eu falei olha, porquê não? Então começámos uma nova produção, dentro da produção e já temos um próximo álbum, por isso vamos lançar dois discos, saiu um de quarteto que é a releitura de um outro cantautor e depois preparámos de “baixa voz”, como o primeiro de inéditos, só letras minhas e melodias do Norton, embora já tenha começado a compor com outras pessoas, foi interessante e esta engraçado o trabalho.

O que te inspirou na composição das letras?
LC: Eu confesso que não sou o tipo de pessoa que compõem na primeira pessoa, tanto assim que uma das canções que a gente mais toca, do “quarto grão”, eu sou um personagem masculino, talvez seja uma forma de eu construir uma linguagem de composição. O dia-a-dia, as pessoas inspiram-me, eu sou coloquial nas letras, por tudo o que passei, pela própria vida. O Júlio Pereira, no disco “Grafite”, pediu uma canção ao Tiago escrita só para mim, tudo isso vai criando uma nova forma de intérpretar. Nós, somos músicos brasileiros, somos uma banda portuguesa e para além das diversas influências do jazz, do rock e mais ainda, já estámos impregnados de uma forma de ver a música, através de uma construção muito mais mestiça do que se eu vivesse no Brasil e começasse a compor. Eu acho que foi o momento certo, vim fazer música em outros lugares e usei a minha visão brasileira, guinense e portuguesa com aquela misturada que toda a gente sabe, mas já com uma linguagem de intérprete muito bem estabelecida, então faz um pouco de diferença. Eu compus devargazinho, estes últimos anos foram dedicados a isso, voltei a tocar violão, só não tenho mais unhas decentes (risos), acabaram! Às vezes, há um plano na vida e a gente vai-se apercebendo, achei que o momento de ser compositora era agora. É um outro repertório, mas com mais ansiedade. Como intérprete, ou músico a gente sabe o que esta entregando, fica à apreciação dos outros, quando se é compositor muda tudo, e muito subjectivo, você não sabe o que o outro vai perceber da sua música. Como cantora, eu peço vários temas, mas nem todos entram no disco. Quando você manda uma canção para um cantautor para ele gravar acontece o mesmo, será que aquela minha canção vai entrar ou não? Eu dentro da minha profissão acabei descobrindo outra, isso faz renovar a diálectica das coisas.

Gravaram três álbum com temas de compositores consagrados de músicos brasileiros e portugueses, sendo um deles Zeca Afonso, alguém com que tinham uma relação quase familiar, pelas tuas origens portuguesas, por parte do teu pai.
LC: Mais português impossível com um pai revolucionário (risos). Com a música do Zeca eu tive um contacto desde muito gúria mesmo, a partir do momento em que o disco “Co' as tamanquinhas do Zeca” entrou na minha vida, que tem uma canção do meu pai, Elípio de Freitas, eu acho que foi o certo. Eu era uma menina dos anos 70, muito dissecada por aquelas sonoridades sul americanas e esse ábum do Zeca, muito particularmente tem uma sonoridade muito latina e isso de repente entrou pela minha orelha muito fácil, se tivesse sido um outro disco, talvez, não tivesse tido essa facilidade. E a partir dali eu criei essa relação, a minha música preferida do álbum era “o homem da gaita”, porque eu achava que era música para criança, o disco era cor-de-rosa e nas fichas técnicas do Zeca eu fui vendo outras pessoas e aquilo foi abrindo um caminho para os outros compositores que entraram na minha vida, como o Fausto, o Sérgio Godinho, o Janita Salomé, o Júlio Pereira, enfim, tanto que com o Júlio esta em todos os discos. Eu digo que foi o Zeca Afonso que me abriu todo um mundo sobre música contemporânea portuguesa, porque quando os meus pais estiveram presos eu fui criada pela minha família emigrante transmontana que ouviam essas canções e outras como o Roberto Leal que divertia muito a comunidade portuguesa, porque era ele que chegava, não havia mais nada. Depois havia os ranchos, as tamanquinhas, as saias rodadas e coloridas e a Amália, claro. Eu falo muito do meu tio avô, um português típico dos anos 50, conservador, mestre de obras, que acreditava que mulher só servia para cozinhar e procriar e estava abaixo da escala social, com a Amália era diferente, ele dizia para mim, vamos ouvir a deusa. Então quando fui para a Guiné Bissau com toda a música portuguesa que entra na minha orelha e mais toda a música contemporânea que se começa a fazer em Portugal, os “rádio macau”, “as doce” de quem sou fã, sei até coreógrafias e tudo e pronto é tudo uma relação e isso vai abrir a novas técnicas. Eu leio todas as fichas técnicas, porque abrem um universo para você novo, o CD perdeu muito isso, porque é tudo tão pequenino (risos). Eu acho que deveríamos manter os “long plays” para ir atrás das fichas técnicas, descobrir quem toca o quê.

Também tem um disco sobre bossa nova, que também é uma grande influência na vossa vida.
LC: O disco de bossa nova foi uma encomenda, na época trabalhavámos com a editora Guru e fazia 50 anos desse estilo musical, já tinha envelhecido coitada. Então a gente nem se lembrou de fazer esse disco, porque eu sou meia desligada de datas. Mas, como tinhámos chegado do Brasil, nem pensar em fazer um álbum de bossa nova! (risos). Depois a editora disse que podíamos fazer o que a gente queria, para o Norton e para mim a bossa nova, para a nova geração de músicos brasileiros, é uma forma de comunicação instantânea, tudo o mundo pode tocar o trabalho uns dos outros, eu podia substituir uma cantora, porque o repertório é de todos, era inevitável que não quiséssemos fazer um disco, mas por outro lado, também era inevitável fazê-lo. Decidimos gravar um concerto ao vivo, foram 40 dias, uma maratona e foi um barato, porque uma coisa é ouvir, ou ouvir cantar normalmente, fazer uma participação, outra coisa é você se debruçar sobre as canções e adaptá-la à sua linguagem. É uma maneira bacana de fazer um disco e talvez tenha ajudado para depois fazer um trabalho com inéditos. No álbum do Zeca a gente queria que tivesse essa linguagem tropical e que no Brasil ninguém precisasse de um glosário para entender o que se estava passando e mais uma vez falámos todos a mesma língua. Foi mesmo uma intenção nossa, foi engraçado, porque todo o mundo tem as suas elações sobre o Zeca Afonso, eu moro numa freguesia muito simpática em Lisboa e notava que quando se falava dele, as suas canções tinham mudado muito as vidas das pessoas, a linguagem que criara, aquilo teve impacto. Então, construímos o disco com todo o universo dele, mais ideal, começou com uma “historinha” mesmo, do “tenho um primo convexo”, pegámos no “comboio descendente”, vamos até ao final com as tamanquinhas e por aí afora, sobre Afonso, o gajo porreiro, que foi morar no Rio de Janeiro. Agora, reeditámos o disco, embora a gente não se tenha lembrado dos 40 anos da revolução, o disco foi muito acarinhado pela crítica e com isso cantar a canção do meu pai com o Júlio Pereira, o “traz outra vez” foi uma canção que também tinha deixado propositadamente de fora e que aparece na reedição, é um tema que me conmove muito mesmo, porque fala dos que ficaram pelo caminho, “já não tinham força para continuar, nós temos de continuar o caminho também por aqueles que ficaram”. Não direi que é uma dívida, mas é um gesto de carinho pelos que lutaram e por isso chamámos o papai, que em 40 minutos gravou a pauta, foi profissionalíssimo, com dois canais de voz, achei muito querido e até mostrei para a Susana Félix que nasceu muito depois de tudo isso, ela mesmo diz que “já nasceu com o passaporte carimbado para a liberdade e num universo mais pobre” e quando ela ouviu me disse que o meu pai tinha feito da canção uma oração e é. É uma oração de reencontro, do religar.

Tu falas do Zeca com um tal carinho.
LC: Olha, eu acho que é a minha pessoa preferida, talvez seja por isso, porque o Zeca ...como dizer isso sem desmerecer ninguém? O Zeca Afonso além das músicas e das composições, era um cantor extraordinário que ele era. Eu como cantora que carrego comigo a técnica, sei tudo o que ele colocava ali, nada era de graça, não era nada intuitivo, era tudo muito estudado e colocado e nele parecia tudo tão amoroso, mesmo a canção do meu pai eu tinha uma encrenca cantar aquilo, porque a parte mais alegre é pesadissíma, fala de milhares que morreram no Brasil torturados e toda a gente bate palminhas e eu não entendia, levei oito anos a entender como é que é. O Zeca que é muito mais inteligente sabia que com a alegria a pessoa vai mais contente a cantar o refrão, chega em casa e pensa. A alegria faz reflectir mais do que a tristeza, não se a deve renegar, porque as coisas andam pesadas no mundo, você deve encontrar alegria até nas pequenas coisas e isso faz muito mais por nós e olhe que eu conheço o tamanho da tristeza, mas isso, não é campeonato, sofrimento não é torneio, as pessoas tinham que levar mais isso em conta. O Zeca foi um homem de grande coragem até o final precoce da vida dele, ele foi embora demasiado cedo e faz falta.

http://nortondaiellobass.wix.com/couplecoffee#!blank/cq11

Deixe um comentário

Certifique-se que coloca as informações (*) requerido onde indicado. Código HTML não é permitido.

FaLang translation system by Faboba

Eventos