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Mistura fina

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Paula Oliveira, a grande diva do jazz e Luiz Avellar, um virtuoso do piano, dois grandes nomes da música nacional e internacional reuniram-se por um acaso do destino e desse elo nasceu um simbiose perfeita sem paralelo, ou ponto final. Desse encontro inusitado nasceu projecto musical de grande qualidade que tem como mote o prazer de estar juntos.

Como é que surge este vosso projecto, mistura fina.

Paula Oliveira: Este projecto tem a feliz coincidência de termos um amigo em comum, que é o Bernardo Moreira, que já trabalhou comigo em projectos anteriores e que nos apresentou. Apaixonei-me completamente pela maneira de tocar do Luiz Avellar e pela sua música. Sobretudo cresceu uma química que acontece naturalmente, esta alma que é universal e que nos une a todos, que não é material, mas sabemos que esta aí, é a música. Decidimos chamar a este projecto mistura fina, não sabemos se vamos alterar ou não, mas ficou. Para já porque tem um significado duplo, é uma mistura e fina, que provém do termo refinado, também é alusiva a um fenómeno no Brasil e que esta a acontecer aqui, que é o encerramento de espaços onde a nossa música se passava e havia a verdadeira tertúlia. Mistura fina é também um clube histórico do Rio de Janeiro que fechou e por onde passaram as maiores vedetas mundiais, como nós temos o Hot Clube cá e portanto tem esta duplicidade. E por ser tão óbvio não tem mal nenhum, se me perguntares se eu quero tocar para a toda vida com o Luiz, não é preciso palavras para acontecer e essa certeza no momento de vida em que já estamos, ele tem quase 58 e eu tenho 48 anos, é uma tranquilidade, sem nenhuma tensão, nem ciumeira, é um espaço muito respeitado, é um pouco como um casamento musical, as pessoas estão porque querem estar ali, não é um papel, ou um contracto que vai estipular o tempo desta relação, acontece pela sua raíz mais profunda, naturalmente.

Fala-me um pouco do vosso repertório, és uma diva do jazz, mas o Luiz Avellar apesar de estar nesta área há vários anos, provém de outros meios musicais, como é que estabelecem esse diálogo entre os dois?
PO: O Luiz tem jazz, tem música brasileira e clássica e é uma mistura disto tudo e faz com que toque como toca. Ele poderá falar-te desse percurso de uma forma mais organizada. É interessante abordar isto, porque nas passagens isso nota-se, nas várias linguagens quando tocámos, isso acontece.

Na composição como é que tudo isso se processa?
PO: Essa é uma questão que muita gente faz, mas que não há uma verdadeira explicação lógica e não existem fórmulas, ou regras, existe sim, um processo empiríco muito forte, que parte dessa ligação com a música que nos envolve, que nos mexe, que nos move e empurra a fazer. E daí enquanto cantora as palavras aparecem, porque a música é feita de palavras e estas dizem-me sons musicais e não há uma lógica, apenas é algo que acontece. Para não entrar em detalhes técnicos, que é o que menos interessa aqui, o que desperta é sabor que para nós tem e o apetite que possámos causar nestas pseudo-receitas. A composição às tantas acontece com a individualização que cada um de nós traz para a música, com a sua carga e história pessoal. Mais do que isso não te posso dizer, há momentos mais felizes que outros, palavras mais contentes que outras, identidades mais próximas das pessoas do que outras e a música é isto. Tudo pode acontecer. O que não pode suceder é o contrário, vir de fora para dentro, isto é algo que nasce de dentro para fora, eu não posso falar de mim, se não souber de mim, não posso falar de determinados sentimentos se não os tiver experienciado e saber pelo menos como é que são. Depois há pessoas que se identificam ou não com esse estado de espírito, isto para explicar o sucesso ou não das composições, mas isso não me perguntes, porque não sei. Só sei do que gosto de tocar, de cantar, que acho que é minimamente honesto, que exige entrega e para o qual me entrego.

Mas, qual foi o fio condutor para depurarem este repertório?
Luiz Avellar: Foi a criação de uma amizade, fomos ficando amigos, eu considero a Paula uma grande amiga, e sinto o mesmo da parte dela. E pensámos muito parecido em música, temos gostos musicais muito próximos, quer na melodia, quer no lirismo. Ela não vêm só do jazz, ela é uma cantora portuguesa, com as influências portuguesas, com tudo o que isso acarreta. Só que ela é uma cantora inteligentíssima, que percebe todos os outros, quando canta jazz tem aquela beleza portuguesa do sentimento e nós nos aproximámos com isso. Para mim tem muito a ver com a música clássica e com o lirismo da epóca romântica, com Chopin, Debussy, Ravel e tudo o mais, em que as tonalidades são misturadas, não existe um padrão reescrito, continua a ser modal, sem muita prisão em certos comportamentos e nós os dois somos muito interessados e atentos a estética sonora. Tenho a certeza que a Paula o vê assim, vejo a música como um quadro, uma pintura.

 

 

PO: Posso acrescentar que a composição é muito cinematográfica até. Uma canção é como se fosse um videoclip, sempre que imagino, ou construo uma canção, penso que estou a ver um filme com aquelas palavras. Essa associação de imagens podia não ser necessária com o potencial que a música tem, mas acho que é necessária por um motivo muito simples, a música toca tudo o que há na terra, às vezes não se dá muito por isso, porque é algo que não se vê com olhos, mas vê-se com os olhar da alma, que é algo mais profundo, são os sentimentos todos, a música tem isso, há sons em tudo.

Tanto um como outro fazem música de fusão.
PO: Eu já faço isso desde o meu primeiro disco. Agora descobriu-se o fado, em todos os meus discos canto fado, já lá vão seis, desde 1998, para mim não é algo novo. Se calhar não o cantei de forma tradicional, mas essa vive cá dentro, é muito orgânica, essa procura de fusão e de uma identidade própria no meu registo lusitano é algo que busco muito. Tenho as minhas musas na música brasileira, aquelas vozes, aquelas interpretações como se faziam nos anos 70, 80 e algumas nos anos 90. Esta década, contudo, não tem nada a ver com a música, para mim, é desastrosa, porque esta tudo banalizado, é um dado adquirido para as pessoas usam como um chiclete, esse é que é o dilema deste início de século, perceber como é que vamos arrumar a casa, porque não é tudo a mesma coisa, nem tudo serve para o mesmo. Actualmente tudo o que se faz na África, no Japão, ou na América é música de fusão. Estamos a influenciar-nos uns aos outros, é algo muito generalizado, embora é preciso que se perceba, que existe algo que me agrada quando canto fora, os estrangeiros que conhecem a nossa sonoridade, através do fado, vêm-me dizer que sou muito portuguesa e isso é a melhor elogio que me podem dar. Sentir essa identidade, porque não me vem falar de técnica, que para mim é supérfluo, falam do meu país e gosto sentir que tenho essa raíz, pode soar a nacionalismo, mas não é.

Luiz Avellar nos últimos 10 anos ou mais, em "movimento" e "contrastes" foi buscar vários estilos musicais que misturou.
LA: Isso é interessante e vai junto com o que a Paula disse, eu vejo em "movimento" e "contrastes" que tudo aquilo é música brasileira. São os sentimentos que existem no Brasil, a arrumação daquilo, a forma de a tocar, emborta as pessoas dizem que é mais virado para música clássica. Mas, não é, eu continuo tocando música brasileira e ela também tem muito da música europeia, sempre teve. A música moderna quando entrou no Brasil foi trazida da Europa, com a música italiana e francesa. A bossa nova é jazz, era uma turma de pessoas que gostavam de tocar temas de jazz que aproveitaram a batida de samba que João Gilberto fazia e depois fizeram melodias para aquelas canções diferentes do que se fazia na epóca, mas que nos EUA já se fazia. Eu também faço a mesma coisa, lógico que o que se ouve pode dar a ideia de outras coisas.

Mas, nos seus concertos a solo há uma mistura muito grande.
LA: Pois, é Brasil!
Apercebi-me das influências do clássico e outras num só concerto de quase trinta minutos.
LA: Mas, isso tem a ver com o Villa-Lobos, com outros compositores clássicos brasileiros que eu cresci ouvindo. E tudo isso se juntou com a música europeia, eu sempre achei que Chopin era brasileiro.

PO: Há um tema em mi menor, o insensatez, o Jobim até se inspirou-se nesse prelúdio.

LA: E o Brasil tem muito disso, essa grande mistura, em que se colocou tudo no mesmo saco, embolou e se foi fazendo do nosso jeito. Tudo o que aconteceu na minha vida foi exactamente isso, estou pegando tudo.

Daí a vinda para Lisboa à procura dessa musicalidade, mas desta vez portuguesa?
LA: Ah, isso começou com um cansaço do Brasil, como a política levou a música, como as pessoas foram encaminhadas a pensarem de uma maneira retrógrada, aquém de uma modernidade de pensamento, eu fiquei muito triste e foi viver para França. Fiquei em Paris três meses e meio, mas não senti nenhuma identidade, acho lindissímo, mas para ficar cinco dias, vim para Lisboa por uma semana, fiquei na casa de um amigo meu, que é um grande cantautor, que é o Fernando Girão. E os dois fizemos um disco que não saiu, com composições nossas, é um trabalho muito bonito e nesse processo me apaixonei por Portugal. Sou um dos primeiros a defender o país, acho Portugal é um oásis no mundo, como nação antiga. Falta ajustar alguma coisas, depois de ajustado, poderá não ser o maior país da Europa, isso nunca vai ser, mas vai ser o melhor lugar para as pessoas estarem, porque a comida e a bebida é fantástica e o povo por mais que rabugento que seja, tem piada, é inteligente e culto.

Mas, não tem vontade de voltar para o Brasil mais democrático?
LA: O Brasileiro perdeu a identidade e esta um pouco orfão, houveram governos completamente irresponsáveis e assassinos, fizeram o que quiseram e o brasileiro esta perdido.

Mas, sempre foi um grande exportador dos seus artistas.
LA: Sim, mas deixou de ser, porque caiu na mesma coisa que aqui esta a acontecer agora, tornou-se a música numa banalidade, porque a classe C é que é a mais importante. As pessoas tem de ter cultura, não se pode basear a cultura de um país nesses agentes, tem que se dar valor as pessoas que sabem fazer e ensinar aos outros como se faz. Não se pode colocar um enfermeiro a ser médico, isso tanto acontece na ciência, como nas artes, agora andam dando valor a certas coisas que tem uma importância sectorizada. Aquele país já fez coisas fantásticas musicalmente, tem pessoas maravilhosas, mas tem de ser colocadas no devido lugar.

PO: O problema da banalização das coisas acontece, porque é dado a opinar a pessoas em áreas que não dominam e não tem ferramentas para dar um parecer profundo sobre a música. Esse é o perigo, porque se uma pessoa é bem sucedida a vender farturas, por exemplo, como ganha dinheiro e é rico, já é importante, como é esperto pode opinar e isso não quer dizer que saiba falar fora da sua área e o que confunde as pessoas é o facto de se tratar de uma pessoa aparentemente culta, mas que não sabe, assim como há pessoas incultas que não sabem coisa nenhuma e falam. Toda a gente devia ter acesso à arte, há uma frase do Nietzsche que afirma: a arte existe para que a realidade não nos destrua. Toda a gente devia ser artista, devia aprender pintura, canto, ou música, isso é bom para as pessoas. O que acontece é que sendo todos os artistas uns vão ser os génios e profissionais, que dedicam a sua vida na totalidade a arte, desenvolvem técnicas, estudam oito horas por dia e um engenheiro pode não pode ter essa dedicação artística, mas qual é o mal de aprender a tocar Mozart? Nenhum, todas as pessoas devem aprender arte, tem de ser acessível a toda a gente.

Mas, voltando à música, até onde querem levar este projecto?
PO: O mais fascinante da vida é não haver essa previsão do futuro. Eu vejo-o assim, a minha condição de vida, a minha maneira de estar é ser cantora, sou um músico, é isso que vou fazer toda a vida e que sei fazer, se calhar é a maior certeza que posso ter, se é que existe. Enquanto o Luiz quiser tocar comigo, isso vai acontecer connosco, mas nada me impede que de repente possam existir outros projectos, assim como foi bom encontrar-nos, também o oposto acontece.

Mas, há uma previsão mais próxima?
PO: A médio prazo, queremos fazer um disco, já o queremos há muito tempo, andámos a pensar nisso, se calhar só este ano se vai concretizar. Esse objectivo nunca esteve longe da vista. A disponibilidade de ver o que acontece a seguir também é importante. O meu interesse de fazer música com o Luiz não esta ligado a mais nada que não tenha a ver com os dois. É um elo que só tem a ver com isso e é muito forte. Tem a ver como a minha maneira de ser artista, tem essa verdade, essa entrega, procura e amizade. Nenhuma delas existe uma sem a outra.

Fala-me deste teu novo projecto musical.
PO: É um projecto que nasceu de uma reflexão sobre quem eu sou agora, fui buscar memórias e perguntei-me o que sou enquanto cantora de jazz portuguesa? Este disco reflecte esse momento, quando decidi lançar um desafio a um grande amigo, o Bernardo Moreira, pai, disse-lhe que queria gravar um disco com os músicos da sua epóca. Eu precisava que gravar com pessoas que estivessem ligadas aos anos 50 quando a música dessa era estava a acontecer. Aquela geração viveu aqueles temas antes de serem os standarts que conhecemos, eles viveram essa música. E foi muito interessante esse processo. Quando falei deste projecto a outras pessoas, o Hot Clube, a instituição da que faço parte, disse que era interessante, achou lindo e disse: vamos fazer isto com a label que detemos, vai aparecer pela primeira vez com este trabalho musical. Constatámos, então, que eles não tinham nada gravado até hoje, são a primeira geração de músicos de jazz em Portugal. São os primeiros músicos que tocaram em festivais no exterior, mas que não tinham registo algum e este meu projecto, de reflexão, de standarts, que era algo quase privado, passou para as pessoas de fora como um projecto sobre o mundo mágico de uma geração, que permite hoje que eu seja uma cantora de jazz e que viva da música.

O que te levou a essa reflexão, essa procura das origens logo agora?
PO: Sempre que faço um disco eu penso no que vou fazer e porque o faço. Eu não canto determinado tema e junto outro e faço um cocktail, não. Há pouco falava da minha identidade como cantora portuguesa, mas este repertório dos anos 50 foram a minha formação musical, uma das mais fortes. É importante fazer este revisitação de uma memória musical, agora quando se gravam standarts há uma componente contemporânea, o embrulho musical é esse, a orquestração, a forma de arranjar os temas, porque já são de pessoas que aprenderam esta música depois dela estar feita. Estes músicos com quem gravei não, viveram aquele momento e não evoluiram para este lado contemporâneo e o que isto traz para a performance? Uma genuidade, uma verdade.

Tem quantos temas?
PO: Era para ser um disco com apenas 10 temas, virou um duplo de 2 CD, com 12 convidados, a nata dos músicos portugueses e fizemos um DVD com o making off, com depoimentos destas pessoas. Não é só a visita pelos standarts, esse é o motivo, o resto é a história deles, gravámos este trabalho ao vivo no clube como eles estavam habituados a tocar, gravámos dois takes de cada tema e escolhemos posteriormente em estúdio um deles. É uma edição pura e dura e depois os DVD é todo o processo de ensaios, com os momentos em que se discutia a música, porque hoje em dia temos as partituras, mas eles não tinham acesso a nada disso, é também divertido ver como se faz esse diálogo, tudo esta ali a cru. De forma muito discreta a equipa de filmagens captou momentos incríveis. O trabalho chama-se "just in time" sugestão de um deles. É um trabalho muito emocionante, não sei o que vai acontecer com o disco, mas o prémio já o tenho, que foi egoisticamente tocar com eles, foi maravilhoso.

E o Luiz Avellar em paralelo com este projecto da Paula, deve ter outros, por ser um músico muito profícuo.
LA: Eu vivi uma epóca de ouro musical da música brasileira, convivi com grandes artistas e uma hora eu larguei isso tudo, olhei para mim e voltei para o piano. Agora só existe este projecto com a Paula que estou a gostar muito e é muito prazeroso. A música só passa a existir quando as pessoas ouvem. E outra coisa que tenho vontade de fazer é compor 20, 30, 40 peças, são partituras que estou a tocar. Tenho um piano maravilhoso em casa, vou gravando e depois ponho isso fora e vejo o que vai dar. Quero deixar alguma coisa e tem a ver com o mundo todo, mas é também brasileiro. Hoje em dia somos uma mistura de tudo e eu tenho vontade de ir tocando, não estou mais preocupado no tipo de música quero fazer, o que saiu, saiu.

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