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Doença da Junventude

Escrito por  Mafalda Simões fts Filipe Figueiredo

 

O Teatro Aberto está em ensaios de uma versão do texto de de Ferdinand Bruckner para estrear no final do mês de Outubro. Na semana passada toda a equipa esteve envolvida na fotografia para o cartaz que foi realizada pelo fotógrafo Mário Príncipe. A maquilhagem foi de Carla Pinho e figurinos de José António Tenente que está a criar o guarda-roupa para o espectáculo.

SINOPSE

Maria terminou o curso de Medicina e vai dar uma festa. A partir de agora, começa a vida a sério. "A vida a sério"... que cliché. Tu nasceste para quê? O que reserva o futuro para ti? Qual é o mal de ter ambições? Colegas de faculdade, ex-namorados, amigas, ódios de estimação, odos se cruzam antes e depois da festa, à procura de alguém especial, à procura de si próprios, em busca do caminho certo para a sua vida. Num mundo descartável e repleto de estímulos consumistas, quem sabe o que é certo ou errado?

FICHA ARTÍSTICA

VERSÃO, DRAMATURGIA E ENCENAÇÃO_ Marta Dias
CENÁRIO_ Marisa Fernandes
FIGURINOS_ José António Tenente
LUZ_ Marcos Verdades
VÍDEO_ Eduardo Breda
COREOGRAFIA_ Vítor Fonseca (Cifrão)
COM_ Carolina Carvalho | Eduardo Breda | Filipa Areosa | Helena Caldeira | Madalena Almeida | Samuel Alves | Vítor d'Andrade

SALA AZUL
De 25 de Outubro a 29 de Dezembro

FERDINAND BRUCKNER

Nasceu em 1891 em Sofia (Bulgária) e morreu em 1958 em Berlim. Passou a sua juventude em Viena, Graz, Paris e Berlim. Estudou Música em Paris e em Berlim e Filologia em Viena. Depois da conclusão do curso, trabalhou como crítico de música e criou a revista literária Marsyas. Em 1916, influenciado pela lírica expressionista, começou a escrever poesia. Em 1922, fundou o Renaissance-Theater em Berlim, para o qual encenou vários espectáculos e adaptou peças do repertório clássico. Sendo o seu verdadeiro nome Theodor Tagger, escolheu o pseudónimo de Ferdinand Bruckner para se estrear como autor dramático com a peça Doença da juventude (1926). Outras peças, como Os criminosos (1928), A criatura (1929) e Isabel de Inglaterra (1930), tornaram-no um dos autores mais célebres do período da República de Weimar. Depois da subida de Hitler ao poder em 1933, exilou-se na Áustria, França e Suíça e, a partir de 1936, nos Estados Unidos. As peças As raças (1933) e Pois o seu tempo é curto (1942) reflectem o seu humanismo anti-fascista militante. Em 1951, regressou do exílio, fixando-se primeiro em Paris e, em 1953, de novo em Berlim, onde trabalhou como dramaturgista no Schiller-Theater. Entre as peças escritas depois do fim da guerra, contam-se Os libertados (1945), Comédia heróica (1955) e O combate com o anjo (1956). Foi distinguido em 1951 com o Anel de Honra e, em 1957, com o Prémio de Literatura da Cidade de Viena. Uma lápide no nº 102 da Kaiserdamm em Berlim assinala a última casa onde morou.

PREFERIMOS NÃO VER
MARTA DIAS

Há coisas difíceis de perceber. Há coisas que custa aceitar. Há coisas que preferíamos que nunca tivessem acontecido. Mas não há volta a dar. O passado trouxe-nos até aqui. Agora é lidar com o que temos à frente, e com o que aí vem. E com o que o espelho nos devolve. Não é confortável. Não é suposto ser. O mais certo é doer. Temos de estar preparados para isso. Não partir do princípio que o mundo nos deve alguma atençãozinha, que somos especiais ou que os outros são de confiança. O mais certo é enganarem-nos, desiludirem-nos. A juventude é, por norma, uma fase de aprendizagem, descoberta e afirmação, com poucas ou nenhumas responsabilidades. É a antecâmara da idade adulta, da autonomia (ou da dependência) que desenvolvemos em relação aos que nos rodeiam. Doença é um substantivo com origem no vocábulo latino “dolentia”, que significa dor, mal, padecimento, sinónimo de maleita, condição defeituosa ou não-saudável, que causa dor, desconforto, problemas sociais ou morte à pessoa afligida. Nos países desenvolvidos, para além do AVC e das infecções respiratórias, as doenças que afectam mais pacientes são condições neuropsiquiátricas como a depressão e a ansiedade. Nesta peça, estamos perante jovens (as raparigas mais jovens do que os rapazes) com posturas bastante distintas na vida, perante a adversidade, face às relações e, sobretudo, perspectivando o futuro. As personagens dividem-se em dois tipos de pessoas: as que têm sonhos e as que têm objectivos; as que trabalham e as que seduzem; as que são criativas e as que cumprem; as que lutam e as que desistem; as que têm pena e as que tratam mal; as que manipulam e as que sobrevivem. À semelhança do que se passa no reino animal. O vídeo, apresentado como prólogo do espectáculo, anuncia a temática maior em que ele se alicerça: a lei do mais forte. Não é inocente a crueza das imagens. Elas são uma provocação que se pretende moralmente física. Custa-nos ver estas imagens? Porquê? Não há qualquer ficção nelas para além de a edição ter eliminado o tempo e a acção entre os trechos da montagem final. Animais selvagens, no seu habitat natural, a caçarem e a alimentarem-se. Custa-nos ver estas imagens?
Comer é matar um ser vivo (animal ou vegetal). Talvez hoje em dia não estejamos muito cientes deste facto. Há muito que o ser humano está no topo da cadeia alimentar. Ou será que está fora da cadeia alimentar? Nós hoje produzimos, criamos, editamos geneticamente os nossos alimentos, sejam eles plantas ou animais. Será que estamos tão entretidos e anestesiados pela forma como vivemos que não conseguimos ver o fundamental? Chocamo-nos com imagens e relatos que testemunham as consequências do nosso estilo de vida (matadouros, poluição, consumo de recursos, escravatura, ...) e preferimos não ver, não pensar sobre isso. É melhor não. É demasiado complicado. Não há solução para um problema radicado tão profundamente debaixo de tudo o que construímos enquanto sociedade.

Propor um texto de 1926 para nos questionarmos sobre 2019 talvez não seja um empreendimento óbvio mas a época entre-guerras/pré-totalitarismos parece rimar assustadoramente com a nossa. E, na verdade, as questões que considero hoje essenciais, urgentes e inescapáveis estavam todas aqui concentradas na peça de Bruckner: - não só sobre a juventude, enquanto grupo de pessoas que pertence a uma geração, enquanto prenúncio do futuro e enquanto símbolo de uma fase de auto-questionamento, de transformação e de integração na sociedade; - também sobre os temas intemporais que as personagens debatem, como o suicídio, a eutanásia, a manipulação, a caridade, a ambição ou a hipocrisia. A lei do mais forte — será ela o caminho natural das relações humanas? Qual é o mal de nos aproveitarmos dos outros? Como é que isso se reflecte no tipo de sociedade que construímos? E quanto é que nos distanciámos da Natureza, na nossa evolução tecnológica e de domínio biológico e progresso neo-liberal? Até onde iremos? Quanto do nosso percurso é auto-destrutivo?

Para compreender que responsabilidades temos para com as gerações futuras, é preciso partir da constatação de que existe uma fractura geracional, que se deve a causas específicas. Enumero somente algumas dessas causas: a intensificação dos processos de globalização devidos ao rápido desenvolvimento dos meios de comunicação materiais e imateriais, por meio dos quais civilizações que permaneceram separadas e auto-referenciais durante milénios estão a encontrar-se e a defrontar-se mais directamente; as profundas transformações da instituição familiar; o alargamento médio da esperança de vida nos países onde são maiores o bem-estar e a segurança; o domínio já consolidado da finança sobre a política, acabando por sobrepor-se aos Estados; a crise de 2007-2008, que provocou o empobrecimento de inúmeras pessoas, a falência de empresas e bancos e o crescimento acentuado do desemprego, especialmente entre os jovens; as correntes migratórias massivas em diracção às zonas do mundo com maior bem-estar e segurança; a deterioração da Terra, atestada pelo sobreaquecimento global, pela contaminação do solo, do ar e da água; a angústia crescente dos indivíduos, que só com dificuldade conseguem dirigir, de modo autónomo, a própria vida, obrigados a mexer-se e a reposicionar-se incessantemente no seio dos rápidos e muitas vezes imponderáveis processos históricos em curso. Quanto aos remédios do ponto de vista ético e intergeracional, põe-se o problema de como sair de uma situação caracterizada por uma moral paradoxalmente provisória e permanente, e de como incrementar, nos dois sentidos (das gerações mais velhas para as mais jovens e vice-versa), o sentido de responsabilidade e de solidariedade.
O indivíduo democrático vive fechado no interior de um pequeno círculo de familiares e amigos, arriscando-se a ficar encerrado na “solidão do seu coração”. Estabelece com as outras pessoas laços fracos e distraídos, que se tornam, por um lado, menos vinculativos, mas que também podem, por outro lado, ser apertados ou dissolvidos a gosto – ou, em todo o caso, com maior facilidade e ligeireza. O individualismo manifesta-se, aqui, na perda dos laços com o lugar de origem e com o tempo longo da história. Enquanto que, anteriormente, os indivíduos continuavam a morar durante gerações na sua terra e a habitar a casa dos pais, agora, pelo contrário, aparecem tomados por uma inquietude frenética, que os leva a deslocar-se continuamente e a abandonar a sua morada. A isto vem juntar-se o desenraizamento temporal, visto que já não conseguem representar a ponte que liga o passado ao futuro. Vivem na ditadura do presente e já só se preocupam com o futuro imediato daqueles que lhes são caros. Abandonadas as grande expectativas colectivas – quando o mundo era dividido em dois blocos políticos contrapostos, orientavam milhares de homens para os valores da liberdade e da justiça, formalmente partilhados, ainda que pouco praticados – , muito mais pessoas começaram a ocupar-se quase exclusivamente da periferia imediata da sua própria existência.

QUE RESPONSABILIDADE PARA COM AS GERAÇÕES FUTURAS?
REMO BODEI

Tendo-se constatado que o “sol do futuro” tarda a surgir e que o capitalismo, em vez de manter as promessas de bem-estar generalizado, torna os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, difundiramse o desengano, a desorientação e a incerteza. A insegurança é, sem dúvida, uma constante da história humana, que viu civilizações declinar, impérios ruir, religiões extinguir-se, povos e línguas desaparecer. A ânsia em relação ao futuro, o medo e a esperança, a dor e a opressão, o desejo de liberdade e a rebelião, a inércia e as iniciativas para desbloquear as situações de sofrimento ou mal-estar intolerável são também fenómenos permanentes, que se manifestam ao longo do tempo segundo uma gama variável de reacções às condições dadas.
Face a um panorama de tal modo variegado, surgem espontaneamente várias perguntas em catadupa: Como enfrentar com lucidez os desastres já ocorridos, avaliando os danos e procurando com sobriedade os remédios? Como reduzir gradualmente a distância entre a realidade e a esperança individuais e colectivas? Como transmitir às gerações futuras uma sociedade possivelmente mais justa e um planeta cujo solo, água e ar não estejam contaminados? Como combater, especialmente nos países onde a ética pública está menos enraizada, a difusão de uma mentalidade cínica ou oportunista?
in BODEI, R. (2019) “Que responsabilidade para com as gerações futuras?”. ELECTRA, Nº 5 Fundação EDP, pp.124-135

A SOCIEDADE AUTOFÁGICA
ANSELM JAPPE

Desde há algum tempo, predomina a impressão de que a sociedade capitalista está a ser arrastada para uma deriva suicida que ninguém conscientemente deseja, mas para a qual toda a gente contribui. Embora correndo o risco de esquematismo, podemos distinguir duas fases na «história psíquica» do capitalismo dos últimos duzentos e cinquenta anos: uma primeira fase “edipiana” e uma segunda fase “narcísica”. A fase “edipiana”, marcada por estruturas autoritárias e por um superego muito visível e muito “masculino”, foi uma continuação directa de certas estruturas pré-modernas. A fase “narcísica” teve início, de forma limitada, na década de 1920, embora se encontrem as suas premissas na cultura artística boémia da segunda metade do século XIX e, antes, entre os românticos. Foi travada pela ascensão dos totalitarismos e começou a impor-se, mais amplamente, após a Segunda Guerra Mundial, nos países ocidentais, dando em seguida um verdadeiro salto qualitativo depois de 1968. Esta vitória do narcisismo é o devir visível da essência oculta, do núcleo da sociedade mercantil, que remonta, pelo menos, à época de Descartes. As formas narcísicas são muitas vezes assumidas erradamente como instâncias de libertação. A vida pósmoderna consiste em fazer da felicidade individual o objectivo da sociedade. Já não se pede ao indivíduo que se sacrifique pelos interesses do colectivo, sendo de facto a satisfação dos desejos, e não o cumprimento do dever, que se propõe como regra geral da vida. Deste modo, é hoje proclamado um direito universal e ilimitado à fruição, que se manifesta no consumismo frenético de mercadorias e na perda completa de autonomia relativamente às próprias pulsões. Isto constitui a condição ideal para uma nova forma de tirania. A abolição da figura do soberano e da própria ideia de educação, combinada com a rejeição de qualquer regra em nome da liberdade, foi ardentemente defendida por Michel Foucault, Roland Barthes, Gilles Deleuze e Pierre Bourdieu. É apenas aparente o abandono do imaginário religioso operado pela modernidade, porque a esse abandono sucedeu o surgimento de uma nova divindade: o Mercado. No entanto, o Mercado nunca poderá verdadeiramente substituir a religião; ele só funciona no presente e “não fornece na ficção aquilo que falta no real dos homens”.
in JAPPE, Anselm. A sociedade autofágica - Capitalismo, Desmesura e Autodestruição. Trad. Júlio Henrique. Antígona: 2019, pp.13, 196-199, 203-204, 218-219

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