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África Mãe

Escrito por  Ana Bernardo


Esta viagem a Angola é diferente de todas as outras. Contada a duas vozes por três gerações, segue os trilhos de vida da minha mãe e avó. Durante o percurso, partilham um sentimento imutável: o amor maternal. São sol no dilúvio. Paz na guerra. Riso no choro.

Aeroporto de Luanda, 1971. A minha avó acaba de aterrar. Vestida a preceito. «Ó mãe, com este clima, de luvas». Divertida, a minha mãe acrescenta: «Imagina, com aquele calor tipicamente africano -  húmido e sufocante. Ri-me tanto. A tua avó era um ponto».

Indumentária inadequada à parte, as saudades matam-se com um sorriso. Um abraço longo. E muito, muito carinho. «Estivemos separadas cerca de quatro anos. É duro»!, relata. E prossegue, emocionada: «Antes de embarcar, a minha mãe disse-me – o Deus de lá é o mesmo do de cá. Nunca te esqueças disso».

Apesar de deixar sete filhos em Portugal, não hesita em deslocar-se a Angola, tão distante do seu País natal. O casamento da sua sétima filha supera todos os receios e distâncias. Nas vésperas da partida, com 70 anos, mede a tensão arterial pela primeira vez. «Sempre foi uma mulher saudável. Não queria nada com os médicos. Antes de viajar, disse às minhas irmãs – filhas, se eu morrer por lá, não se preocupem. Até posso ir para o caixão vestida de vianesa. Aprendi muito com a tua avó. Ensinou-me a ter sentido de humor. A ser firme e corajosa. E a nunca desistir dos meus sonhos».

Comovida, escuto atentamente as palavras da minha mãe: «Não me esqueço do seu rosto admirado aquando da nossa viagem de Luanda para Nova Lisboa, onde o teu pai e eu vivíamos. Só me dizia – tanta terra sem ninguém. Este nosso reencontro em África veio aprofundar ainda mais os nossos laços. Até à sua morte, com 95 anos, foi uma mãe extraordinária. 100 por cento dedicada. Fez muitos sacrifícios para criar nove filhos. Desistiu inclusivamente da sua actividade preferida - tocar piano. Mas talvez fosse mais fácil ser mãe naquela altura. A tua avó, como a maioria das restantes senhoras, não trabalhava fora de casa».


À descoberta de África
Fruto de uma educacão esmerada, a minha mãe revela uma firmeza apenas existente nas mulheres superiores. A estadia em Angola vem apenas apurar a sua personalidade forte. «Fui para África em 1967, na companhia da minha irmã mais nova e do seu marido. Um pouco por aventura. Queria conhecer outro continente, novas terras e outras culturas. Mas também porque desejava trabalhar como enfermeira e ganhar mais dinheiro».

Curiosa, pergunto: «Como foi a travessia de barco de Lisboa para o Lobito»? O brilho no olhar é indisfarçável: «Uma experiência única. Lembro-me de ver os golfinhos a saltitarem no mar. E da paragem, primeiro na Madeira. Depois em São Tomé e Príncipe. Apanhámos um taxi a cair de podre. Mas o motorista era muito simpático. Mostrou-nos a Ilha, um paradoxo inacreditável - vegetação rica, luxuriante e a população paupérrima».

O meu interrogatório continua: «E a chegada a Angola? O que sentiste»? A resposta não se faz esperar: «Chegados a Luanda, não pudemos sair do barco. Avistámos a cidade – linda e imponente – de longe. Lembro-me bem do clima sufocante, húmido. E do bafo de calor. Continuámos até ao Lobito. Terra pequena, mas muito bonita. Parecia uma cascata». E remata: «Chegámos finalmente a Nova Lisboa, o nosso destino. Que cidade fascinante! Situada a mais de 1000 metros de altitude, tinha um clima temperado. Nunca me esquecerei dos fabulosos jardins de rosas. Foi assim que a minha estadia em Angola se iniciou».

O começo não foi simples. «No primeiro apartamento tivemos baratas - grandes, com asas. Apanhávamos imensos sustos. Foi então que nos mudámos para outra casa. Ficava perto do Jardim Zoológico. Dos voos de baratas passámos a ouvir o rugido dos leões», recorda, com um sorriso aberto.

Mãe depois da guerra
Totalmente integrada na sociedade local, começa a  trabalhar como enfermeira na Companhia Mineira do Lobito. Estávamos em 1968. Após alguns anos, tem a felicidade de conhecer a sua alma gémea - o meu pai. «Namorámos cerca de três meses e casámo-nos. Aprendi muito com ele. O seu sonho era a fazenda no interior de Angola, Balombo, que criou com tanto amor. Aos fins-de-semana ajudava-o a tratar do gado. Cheguei a dar injecções às vacas. Vi crescer os vitelinhos, os pés de café, os abacaxis. Sentia-me uma verdadeira cowgirl».

Em 1975, os meus pais são obrigados a acordar deste sonho. A voz da guerra falou mais alto. «Sofremos muito com os tiroteios e a falta de segurança. Apesar de ver o meu marido desolado por deixar a sua querida terra natal, tivemos de vir para Portugal», salienta.

O regresso foi feito com grandes dificuldades. Os olhos da minha mãe espelham bem a sua emoção: «Tivemos tantos problemas no início. Mas um dia descobri o que suspeitava  – vim grávida de Angola. Após a guerra e os tiros. Não posso exprimir aquilo que senti na altura. Parecia que ia rebentar de felicidade. Não tínhamos nada material, mas conseguimos aquilo que tanto queríamos – um bébé, o nosso bébé»!

Após 16 anos de um casamento feliz, o coração do meu pai deixa de pulsar. Repentinamente. Sem a sua alma gémea, torna-se complicado educar uma criança. Todavia, a sua personalidade forte nao se deixa intimidar pelas agruras da vida.«Fiquei com a minha filha. Ela enche-me todos estes anos o vazio que o meu marido me deixou. Tenho tentado ser uma boa mãe».

Silêncio. A minha mãe está esgotada de falar. Mas feliz. Eu também. Aprendi muito com ela. Que privilégio poder escutar as suas sábias palavras. Seguir os seus conselhos de vida. Usufruir do seu amor incondicional. Partilhar as suas inúmeras memórias. De Portugal. E de Angola. As acácias em flor. A visita da sua mãe. O cheiro a frutos exóticos. A imensidão da natureza. A descoberta do amor da sua vida. A guerra. E o «tornar-se» mãe. Obrigada, África. Obrigada, mãe. África mãe. Continente ardente, fecundo. Provável berço da humanidade. Razão da minha existência.

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