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Copenhaga, o meu novo porto de abrigo

Escrito por  Ana Bernardo


Receio do desconhecido. Da solidão. Da língua estranha. Por outro lado, desejo de aventura. Vontade de mudar. Aeroporto da Portela, Lisboa. A minha alma é um campo de batalha. Tenho 30 anos, viajo sozinha. Com um bilhete de ida e uma pequena mala. Mas a minha esperança não tem fronteiras. Atravessa a Europa de sul a norte. De Portugal à Dinamarca.

Uma gota de água mancha ligeiramente o meu «Syv Fantastiske Fortællinger» («Sete Histórias Góticas», Karen Blixen). Um livro mágico. Devoro-o de um só trago. Em dinamarquês. Que privilégio não ter de recorrer ao dicionário - a bíblia do emigrante. Mas há cinco anos não era assim.

Sentada em «Gammel Strand», junto a um dos muitos canais que enfeitam Copenhaga, deixo-me seduzir pela luz diáfana do fim de tarde. Pelas palavras de Blixen. E pelo cenário deslumbrante que me rodeia. O magnífico edifício de «Christiansborg». Visitado anualmente por 60.000 turistas, tornou-se sede do governo dinamarquês em 1849. A Bolsa. Construída entre 1619-1623 por Christian IV, é um dos monumentos mais antigos de Copenhaga. O «Thorvaldsens Museum» inaugurado em 1848, alberga as esculturas de Bertel Thorvaldsen. O edifício do Ministério da Cultura. Antiga casa de penhores, serve de lar ao Ministério desde 1961. Os tectos de estuque únicos. As inúmeras obras de arte que lhe embelezam as paredes. O fantástico escritório do Ministro. O pitoresco jardim. Conheço bem os segredos deste velho local. Aqui trabalho de segunda a sexta-feira. Em dinamarquês. Sem recorrer à bíblia dos emigrantes. Mas há cinco anos não era assim.

A cortina de água mexe-se subitamente. «Como é que era há cinco anos»? «O que sentiste quando chegaste à Dinamarca»? «É difícil ser emigrante neste país»? As perguntas não cessam. Fruto da minha fantasia ou não, a água parece querer escutar o relato da minha vida de emigrante. Inspirada, chego-me mais perto do canal. E sussurro:

(...) Julho de 2006. A aterragem no aeroporto de Kastrup é suave. O meu estado de espírito não. Com um misto de expectativa e nervosismo, caminho para o metro, em direcção ao centro da cidade. Determinada, aperto os pulsos para evitar saborear o sal das lágrimas. Um truque eficaz que utilizo desde a infância. Copenhaga põe-se bonita para me receber. O sol pincela o azul do céu em tons de ouro. O vento está de folga. Um início promissor.

 

Falar «dansk»
Após a turbulência da chegada, começo a delinear a minha estratégia para o futuro. Não há tempo para tristezas. Lá fora, escuto o «timbre» original do dinamarquês. Impossível! O primeiro passo é a inscrição numa escola de línguas. A comunicação é a chave para me integrar numa sociedade com costumes tão distintos de Portugal.

Lembro-me bem das primeiras aulas. Da dificuldade em pronunciar os sons guturais do dinamarquês. Das consequentes dores de garganta. Da descoberta de diferentes nacionalidades e culturas. Do contacto com os atenciosos professores.

- «Repitam comigo, por favor: København (Copenhaga em dinamarquês). Não, não é Kobenhavn , København! Ø, Ø»!
A minha dedicação à aprendizagem da língua é ilimitada. Estudo nos autocarros, no comboio, no supermercado, aonde quer que esteja. A simpatia natural dos dinamarqueses dá-me alento.

- «Portuguesa? Gosto imenso de Portugal, é um país muito bonito, cheio de contrastes. Tivemos há algum tempo um rapaz português a trabalhar na nossa loja. Foi sempre cumpridor e pontual. Um excelente funcionário», salienta um senhor que encontro ocasionalmente numa festa. E prossegue: «Falas bem dinamarquês para quem cá está há tão pouco tempo. Não desistas!»

Obviamente. A palavra desistir não consta do meu vocabulário. Já consigo comunicar razoavelmente.

O próximo objectivo é a integração no mercado de trabalho. Um passo complexo, uma vez que ainda não domino a língua. Mas para uma emigrante lutadora não existem dificuldades. Apenas desafios. Destemida, contacto inúmeras agências de trabalho temporário. Encontro emprego sem problemas. De jornalista torno-me em «faz tudo»: Lavo louça em diversas empresas. Ajudo na cozinha – ralo cenouras, descasco batatas, corto pão. Empacoto caixas de medicamentos em firmas medicinais. Conto dinheiro. Distribuo correio. Os meus dias têm 48 horas.

Copenhaga, minha vida
Apesar de trabalhar ininterruptamente, não descuro a aprendizagem do dinamarquês. A fadiga é inevitável (chego a adormecer nos bancos dos autocarros). Assim como as saudades. De Portugal. Da família. Dos amigos. Da luz do sul da Europa. Do sol. Das festas tardias. Do Alentejo ao anoitecer. Do cheiro do Atlântico. E o medo de falhar. As frustrações. As noites sem dormir. O domínio não completo da língua. As inúmeras batalhas de emigrante. Com firmeza, afasto a melancolia dos pensamentos. Aperto os punhos. Mais uma vez. Faço o choro prisioneiro da alma. Intrepidez é a palavra de ordem.

Os dias, meses, anos voam nas asas do tempo. Já estou na Dinamarca há quase cinco anos. Deixei de ser uma «nómada profissional». O desejo inabalável de me integrar na sociedade e a vontade ardente em aprender a língua deram frutos. É um privilégio trabalhar no Ministério da Cultura. O respeito que nutro pelos dinamarqueses é infindável. Despretensiosos, são extraordinariamente acolhedores. Nunca senti qualquer forma de discriminação. Há quem os apelide de frios e indiferentes. Reservados, diria. No início, foi difícil entender-lhes o humor. Refinado, a roçar no macabro. Brilhante! Cinco anos depois, sinto-me honrada de o entender. Contra os dinamarqueses, tenho apenas duas advertências:

1 - Cuidado com os ciclistas. Andam como loucos pelas ruas, passeios e esquinas. Egoístas e impacientes, não se compadecem da falta de experiência de novatos e dos transeuntes menos apressados. Chegam a ser rudes e grosseiros.

2 – Geniais em incontáveis temáticas, desconhecem o conceito  ‘fila de autocarro’. A ordem de chegada é irrelevante. A última pessoa torna-se subitamente na primeira. Após uma cotovelada e um encontrão dado com o saco de supermercado ao «futuro colega passageiro». Sem pedir desculpa. Um completo caos.

Após cinco anos de confidências mútuas, Copenhaga torna-se no meu novo porto de abrigo. Hoje e sempre. Não a trocava por nenhum local do mundo. Com carinho, penso nas ruas estreitas do centro histórico. Nos parques luxuriantes. No charme dos múltiplos canais. No brilho das velas dos cafés num triste sábado de inverno. No sempre lúdico Tivoli. Na alternativa Christiania. Na quietude dos lagos. Na pequena sereia. Na profusão de culturas, cores e cheiros em Nørrebro. Nas inúmeras «sexshops», bares e cafés na estimulante Vesterbro. Nas ruas e lojas elegantes em Østerbro. A lista é interminável. Mas não existem terras imaculadas. Ainda hoje me espanto quando observo papéis e outros detritos a cobrirem as ruas. Os inúmeros grafites a vestirem as paredes. E a violência em algumas partes da cidade. É verdade que não assume as dimensões exageradas de Portugal. Todavia, sempre pensei que a Escandinávia fosse imune a actos de incivilidade(...)

A água do canal movimenta-se. Parece ter apreciado o longo relato do pássaro lusitano perseverante. Nunca renegarei as minhas raízes. Saudades? Muitas! Mas ler e escrever na minha língua materna ajudam a dissipar a dor. Sou portuguesa. Mas também filha de Copenhaga. Os meus sonhos ancoraram nesta cidade. É crucial não deixar de sonhar. Por uma vida melhor. E ser firme. Corajosa. Séneca, filósofo e escritor romano, salientou uma vez: «A coragem conduz às estrelas, o medo à morte». A coragem conduziu-me a Copenhaga. Nesta cidade, os meus sonhos são infinitos.

PS – Este texto é dedicado ao Flemming, Joana, Isabel, Lars, Teresa, Sergey, Christian, Gudrun, Svend e Lene

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