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Memórias de um fado eterno

Escrito por  Ana Bernardo


Como numa epopeia, Lisboa ergue-se, majestosa, no horizonte. É cadência, aroma, luz, inspiração. Fim de tarde com sabor a laranja e baunilha. Amores perdidos e achados. Retalho vivo de memórias. O Fado. A saudade. Um pedaço de mim.

São 18:00. A tarde quente de Verão de 1999 é feita de suaves murmúrios. O Elevador da Glória dança, uma vez mais, nos trilhos da íngreme colina. Assim se preenchem os seus dias desde 1885. Este poderia ser apenas um dos seus múltiplos percursos. Esquecidos no tempo, abafados pela mudez dos seus protagonistas. Mas a viagem que agora começa fala mais alto do que o silêncio...

Finalmente chegamos ao topo. A minha amiga japonesa respira de alívio.

- «Uma máquina tão velha não pode ser segura», salienta, com uma gargalhada nervosa. Encolho os ombros e, cuidadosamente, coloco um lenço preto à volta dos seus olhos amendoados.

– «É para estimular a tua curiosidade». Embalada por uma brisa ténue, conduzo-a até ao Miradouro de São Pedro de Alcântara. Uma das muitas portas de entrada para o Bairro Alto. Sem demoras, retiro o lenço dos seus olhos.

-«Agora sim, Rina, podes contemplar, sentir, tocar. Amar Lisboa!», ressalvo. Com uma curiosidade quase infantil, aguardo a sua reacção. O sorriso contagiante não deixa margem para dúvidas.

- «Ah Ana, que vista fantástica. O Castelo de São Jorge, a Graça. E o Rio Tejo, tão grande, parece o Mar». Apenas lhe posso dar razão. O casario deslumbrante pintado de cores intensas. A serenidade espelhada no azul do céu. O verde intenso das frondosas árvores salpicadas no horizonte. O dourado do sol que, fatigado após mais um dia de vida, adormece lentamente na água. Um fim de tarde inesquecível. O sabor ácido da minha laranja contrasta na perfeição com a doçura da baunilha que paira no ar. Provém dos bolos «muito freeeescos» vendidos na barraquinha da esquina.

Memórias eternas. A noite acaba de nascer. Por entre fascinantes ruas empedradas, deixamo-nos guiar pelo brilho da lua. É difícil acreditar que o Bairro Alto, construído em finais do Século XVI, foi inicialmente ocupado pelos ricos que se mudaram de Alfama.

- «Aqui há tantos bares e restaurantes. Estou cheia de fome. Quero comer uuuuuas» suspira Rina, com a sua pronúncia peculiar.  Esboço um sorriso de orelha a orelha.

- «Está bem, vamos lá comer lulas. Conheço um bom restaurante não muito longe daqui».

O cheiro das flores das varandas é subitamente substituído pelo aroma intenso a lulas recheadas. Deliciosas e fumegantes. Para completar o repasto, tinto alentejano. Uma verdadeira explosão de fruta, macia como veludo, apodera-se paulatinamente da minha boca. Estou no Paraíso!

Entre gargalhadas, escutam-se acordes de guitarra. E uma voz embriagada pela emoção que nos agarra os sentidos. Lisboa musical. Fado. Canção de Saudade que, diz quem sabe, remonta aos cânticos dos Mouros.

- «É verdade que Fado significa destino»? pergunta Rina, curiosa.

- «Sim, é verdade», confirmo.

- «Então Lisboa é o teu Fado»?

Lisboa é o meu Fado...Enquanto repito esta frase mágica, evaporo-me no passado. Embarco numa viagem de memórias sem fim.  Redescubro o Castelo de São Jorge, antiga residência real - as caudas majestosas dos pavões, seus habitantes fiéis, sempre me fascinam. A Lisboa moderna, emoldurada no Parque das Nações, palco de inúmeras actividades culturais – outros olhares sobre o Tejo. O deslumbrante Museu dos Azulejos, no convento da Madre de Deus, fundado em 1509 por D. Leonor, viúva de D. João II. Aqui consigo  encontrar a paz. O Mosteiro dos Jerónimos, auge da Arquitectura Manuelina, encomendado por D. Manuel I, após a chegada de Vasco da Gama. Faz-me sentir orgulhosa de ser portuguesa. A Torre de Belém, claro. Símbolo inquestionável dos Descobrimentos. O Museu da Arte Antiga. É neste Palácio do Século XVII, também conhecido por Museu das Janelas verdes, que me apaixono pela Arte... Posso continuar durante meses. Oh capital de Portugal, a tua imensa História perdurará!

Lisboa, meu fado. De memórias eternas. Do riso contagiante da Sr. Adozinda do quiosque que me estende o «Público» todas as manhãs. Da voz animada do Sr. Fernando que prepara diariamente com carinho a minha bica. Da luz branca e única que se reflecte na minha janela e me ilumina de felicidade. Das noites amenas de Primavera no Chiado, na Baixa, no Príncipe Real. Das risadas soltas após um copo de ginja no Cais de Sodré. Do choro cortante no regaço dos amigos depois de mais uma noite sem sentido. Dos espelhos dourados do café «A Brasileira» onde escrevo e reescrevo sobre tudo e nada. De amores perdidos e achados. Lisboa, meu fado. És pedaço de mim!

«Ana. AAAAAna». A voz de Rina traz-me de volta à realidade.

«Estamos sentadas aqui há séculos. Vamos pagar»?

De volta às ruas empedradas, partimos à conquista de aventuras luminosas e sonhos marinheiros. A viagem continua. É sempre demasiado cedo para deixar de contemplar esta Cidade. Lisboa, após uma noite, semanas, até meses, é um poema inacabado. Desvendar o seu Fado, conquistar o seu amor demora uma vida inteira.

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